Semana não tão
santa
Publicado no Montbläat em abril de 2007.
Diz
uma velha história
do povo Samburo, habitantes do norte do Quênia, que leões
só atacam pessoas quando um dos seus ascendentes matou um
desses felinos no passado. Numa espécie
de memória ancestral,
como nas tragédias gregas, a matança será sempre
lembrada e as novas gerações
pagam pela violência
passada.
Assim, as comemorações da Semana Santa me despertaram antigas lembranças,
principalmente a cerimônia
intitulada “In Coena Domini” onde o Papa Bento XVI
lavou o pé de um
dos doze fiéis escolhidos para esse ato na Basílica de São
João de Latrão, em Roma. Este ritual simboliza a humildade
do gesto de Jesus Cristo
ao lavar os pés
de seus discípulos
na última ceia
em Jerusalém. Os fundos
recolhidos no ofertório da cerimônia foram oferecidos a um
hospital em
Baidoa, na Somália, que sofre
continuamente as violências das guerras desde
os tempos em
que era
uma colônia italiana. Outro fato que me despertou profundas lembranças
foi o convite papal
aos sacerdotes e todos
os católicos “a limparem a sujeira que existe em
nossas vidas”.
O
ofertório do Papa
à Somália levou minha memória ancestral
ao ano de 1958, quando
a população acompanhava entristecidas
com as notícias radiofônicas sobre a morte do Papa Pio XII e uma voz, posteriormente
apagada da História, comentou: como pode ser considerado
santo, um religioso
que asperge água
benta em
aviões de guerra
italianos que se preparam para
bombardear os somalis que
lutavam apenas armados de lanças? Seria este ofertório
uma reparação simbólica, mais de cinquenta anos
depois, para
as atrocidades cometidas neste país pelos exércitos coloniais italianos com
o beneplácito papal?
A
humildade que
o Papa tenta
demonstrar fica seriamente desacreditada também quando, sobre
a égide deste Sumo
Sacerdote, a Igreja
volta a mostrar
a sua negra
e repressiva face
medieval com
a Congregação para a Doutrina da Fé
(eufemismo usado para
os atuais Tribunais
da Inquisição) censurando escritos e palavras
do sacerdote Jon Sobrino que
no paupérrimo El Salvador
luta pela
justiça social
com o risco
da própria vida,
tal qual
a freira Dorothy Stang aqui no Brasil.
O mais triste
disso, é esta parcialidade do Vaticano, já
que nunca
emitiu, por exemplo, uma palavra sobre o massacre de El
Mozote, onde oitocentos camponeses foram
massacrados no dia 11 de dezembro de 1981 numa aldeia
paupérrima deste mesmo
El Salvador de Jon Sobrino – que
por sinal
é o único sobrevivente
do massacre de seis
jesuítas de sua
geração – e do arcebispo dom Oscar Romero (ver Testemunha da Chacina, Alma
Guillermo Prieto, Piauí-abril 07). Salta aos olhos
também as atrocidades
cometidas pelo IRA
(Exército Republicano Irlandês) e pelo Exército do Sul do Líbano (falange
fascista católica
que atuou por
muitos anos
no sul do Líbano em
colaboração com
Israel) organizações ditas católicas e que jamais
sofreram qualquer censura
do Vaticano por suas distorções patológicas da doutrina cristã. Será que
suas atividades
terroristas se coadunam com humildade e
justiça?
Outra demonstração
da parcialidade do Vaticano é a notícia de que
o Papa Bento
XVI fez um apelo
ao governo do Irã para
que fossem soltos os quinze marinheiros que
invadiram as águas territoriais
deste país de modo
a passar esta Páscoa no conforto
de seus lares. Não deveria ter sido feito também um apelo semelhante ao governo
americano para que fossem soltos centenas
de prisioneiros que
sofrem em Guantánamo e Abu Ghraib ao arrepio de qualquer
lei de um mundo
civilizado e cristão?
Quando
o Papa convida os sacerdotes
e todos os católicos “a limparem a sujeira que existe em nossas vidas”,
ele deveria ser
um pouco
mais cuidadoso, pois
aqui no Brasil, em
Santa Catarina, isto
é feito no sábado
de aleluia com
extrema violência
e crueldade com
a chamada “Farra
do Boi”.
Esta é uma celebração trazida pelos açorianos
que migraram para
o Brasil devido a sua
experiência com
as atividades marítimas e com a pesca da baleia, sendo introduzida em
Santa Catarina há 250 anos. A Farra do Boi é
uma releitura sangrenta da Paixão de Cristo,
com o boi
representando Judas e a traição ou mesmo o demônio,
que deve ser
torturado para que
as pessoas sejam purificadas de seus pecados,
limpando a sujeira de suas
vidas.
Nesta celebração o boi sofre todo
o tipo de crueldade, desde ser privado de água, perseguido pelas ruas
sofrendo pauladas e pedradas
até extremos,
como ter os
olhos perfurados, introdução
de cacos de vidro
em suas
cavidades e agressões
inimagináveis. Depois
de horas de sofrimento o animal cai de cansaço e fraqueza com a perda de sangue
e tudo termina em
churrasco. São cenas repugnantes
e quem protestar
ou tentar fotografar será seriamente agredido pelos
farristas.
Festas religiosas cristãs onde animais são torturados ocorrem também
na Espanha e Portugal no dia de São Firmino (que
só envergonha o Santo). São as festas
do Encerro e da Capeira, em plena Comunidade Europeia!
O mais
grave é o incentivo
a esta violência como as touradas na Espanha e Portugal que
viraram diversão e para
muitos até
arte, chamada
tauromaquia. Esses costumes
foram exportados para o México, Peru
Bolívia e até para
a França.
Aqui no Brasil a TVE (televisão
espanhola) nos finais
de tarde apresenta bárbaras cenas de touradas
incentivando as crianças à esta prática violenta numa
apologia ao crime,
já que
a Lei de Crimes
Ambientais (Lei Federal
no 9.605 de fevereiro de 1998) considera
abusos e maus–tratos à animais
como crime.
A
Farra do Boi
já era
proibida desde
1977 por decisão
do Supremo Tribunal
Federal, mas
os deputados de Santa
Catarina e vereadores do Município de Governador
Celso Ramos
(SC) já tentaram burlar
a lei federal,
mudando o nome desta festa religiosa
para Brincadeira
do Boi.
Este ano
o festival de selvageria
continuou ocorrendo em diversos municípios
catarinenses, com
a omissão ou mesmo conivência
de autoridades eclesiásticas, federais, estaduais e municipais.
Da praia dos Ingleses, em Florianópolis, veio
a notícia de que
um boi, todo
mutilado, preferiu lançar-se ao mar para
ficar livre do sofrimento. Após o afogamento, foi resgatado e repartido em pedaços que foram distribuídos entre
os participantes da hecatombe.
Enquanto isto o
Senador Francisco Dornelles (PP-RJ),
esquecendo-se que não
estamos na terra dos aiatolás
e que aqui
existe separação entre
Igreja e Estado,
propôs um projeto
de lei consagrando o dia 11 de maio
a Santo Antônio de Sant’Anna Galvão que na prática será mais um feriado neste verão
que não
se despede. Mas
como o interesse
material é o que
importa, o Banco Central
já avisou que
este dia
não será considerado para
fins de rendimentos
das operações financeiras
e, portanto, não contribuirá para os juros e correções das cadernetas
de poupança e fundos
de garantia.
Será uma espécie de homenagem de Frei Galvão aos banqueiros!