No ano de 212 a.C., após um cerco de dois anos à cidade de Siracusa, na Magna Grécia, atual Sicília, esta foi capturada pelas legiões romanas. Quando a casa de Arquimedes – que com seus engenhos ópticos e mecânicos retardou ao máximo a queda da cidade – foi invadida pelos romanos, ele estava no quintal desenhando na areia suas figuras e estudos geométricos, quando um dos soldados pisou sobre os mesmos. Noli tangere circulos meos (não toque em meus desenhos), exclamou Arquimedes em seu precário latim, sendo imediatamente morto por uma lança, que destruiu fisicamente este velho filósofo e matemático. Mas não conseguiu eliminar o seu acervo intelectual, que, atravessando os séculos, chegou até nós.







Neste blog republicaremos também artigos da minha coluna semanal BRASILIANA, do jornal MONTBLÄAT editado por FRITZ UTZERI.




segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Alta Tecnologia


            Enquanto o Brasil entra na era espacial pela porta dos fundos pagando 10 milhões de dólares por uma mera carona no ônibus espacial russo, vamos falar daqueles brasileiros que não pertencem ao MST nem aos programas de Bolsa Família ou Cesta Básica e, portanto, têm que trabalhar com grande criatividade e afinco para sobreviver.

            Na figura abaixo mostramos uma singela viatura conhecida popularmente como jerico ou paco-paco.  A foto foi tomada em uma poeirenta estrada que liga a cidade de Alta Floresta às barrancas do rio Teles Pires em Mato Grosso.  A origem desta criativa máquina andante vem de alguns anos atrás quando o governo federal expulsou milhares de garimpeiros que viviam da larva de cassiterita no município de Ariquemes em Rondônia.  Esta multidão de trabalhadores foi dispersada a toque de caixa, que uma empresa em poucos dias assumiria o garimpo desse valioso minério de estanhoCom uma mão na frente e outra atrás, estes brasileiros abandonaram uma infinidade de máquinas, equipamentos, bombas etc.  Normalmente toda esta sucata industrial significaria mais poluição no nosso tão degradado meio ambiente.  Felizmente ali entrou a criatividade e capacidade de trabalho dos brasileiros que simplesmente reciclaram todo material abandonado, transformando-os em jericos ou pacos-pacos que rodam por várias cidades e estradas da Amazônia.  Estes veículos usam os motores das bombas de mineração e obedecem diversas normas de segurança, possuindo inclusive pisca-pisca, espelho retrovisor etc., sendo ainda extremamente econômicos, rodando mais de 20 km por litro de gasolinaUm ponto que me chamou muita atenção no designe deste veículo (não mostrado na foto) era o seu interior forrado com um velho tapete tipo persa que foi aproveitado de um lixão, mostrando que não é a socialite Vera Loyola que gosta de tapetes persas nos pisos de seus carros


            Nesta segunda fotografia, mostramos uma outra viatura um pouco mais sofisticada chamada de carreta agrícola que trafegava na região do município de São Miguel das Missões no Rio Grande do SulTambém é feita com material reciclado e tem como ponto mais interessante a logística no uso do seu motor fabricado originalmente para máquinas agrícolas. Na época da colheita ele é adaptado a uma colheitadeira, podendo ainda ser usado em equipamentos para pulverizações e irrigações das plantações. Nas entressafras é adaptado na carreta agrícola. No dia da foto o nosso caro fazendeiro trabalhava cortando capim nas margens da estrada para levar para o seu gado, de modo a complementar o seu pequeno pasto e de quebra contribuía para a comunidade economizando as verbas públicas na manutenção da estrada.
            Aqui vão dois belos exemplos de alta tecnologia, felizmente bem distantes do Departamento de TI (Tecnologia da Informação) da Caixa Econômica Federal, pois não foram construídos para trafegar na lama.  


Rio de Janeiro, 3 de abril de 2006.
Fotos e texto por Teócrito Abritta.




domingo, 9 de outubro de 2016

A Última Gota

A realidade imitando a ficção...


Foto T.Abritta.

          O Meritíssimo Doutor Desembargador Ademar Santos não conseguia pegar no sono.  Tantos títulos e importâncias, membro de uma espécie de realeza dos nossos tempos, trocaria tudo pela tranquilidade de um descanso profundo.  A cerimônia da tarde fora arrasadora.  Humilhação total.  Tantos discursos e homenagens para consagrarem uma farsa: para consagrarem o “pato” escolhido.  O “otário”, o “esparra”, como dizíamos quando garotos.  Pelo menos poderíamos ter saído logo depois do palavrório.  Mas Glorinha queria aproveitar ao máximo.  Uma taça de champanhe atrás da outra.  Como se fosse a última gota.  La Dernière Goutte.  Ah, que saudades daquele restaurante em Lyon, dos tempos em que era feliz.  Jogava meu vôlei na praia, dava uma passadinha no escritório de advocacia só para assinar papéis, uns telefonemas e o dinheiro caía diretamente na conta.  Ainda havia tempo para dar um trato na coleção de armas e ir ao estande de tiro.  Mas tudo tem suas vantagens.  Não teria mais que aturar aquele contínuo me chamando de “Meretríssimo” ou Doutor Santo.  A culpa era minha.  Tive de nomeá-lo para meu gabinete e em troca o Santoro nomeou Patricinha, minha filha, para nem aparecer por lá, ficar escrevendo aquela tese ridícula e frequentar academias de ginástica às custas da Previdência Judiciária.  Cada vez que eu pedia restituição dos gastos da Patricinha, tudo assinado, como seções de fisioterapia da Glorinha, sentia uma pontada de vergonha.  No fundo, éramos todos uns espertalhões que disfarçavam falcatruas.  Ladrões togados, como chamaria a imprensa popular! 
Tudo sob o respaldo da lei.  A Previdência Judiciária recolhe cinco por cento de cada papel registrado nos cartórios.  Por outro lado, a Previdência Advocatícia recolhe o mesmo para cada taxa judiciária.  O equivalente seria um policial recolher dinheiro para o plano de saúde privado dos lixeiros e, em troca, estes abastecerem a caixa de sua previdência, também privada.  Diante da Justiça todos se calam.  No fundo não somos respeitados.  Somos temidos.  Quem alegará inconstitucionalidade nessas operações casadas?
          Agora, a novidade.  Depois da lei que presenteia as filhas solteiras com o direito de receber pensão vitalícia dos pais, Desembargadores, Patricinha tratou de divorciar-se e vive aboletada aqui em casa.  Ela e Glorinha planejaram suas vidas após minha morte.  A pensão inicialmente ficaria com a mãe e depois passaria integralmente para a filha.  Uma beleza de amor filial: abrir mão da metade do dinheiro enquanto Glorinha for viva.  O gosto de cianureto amargou minha boca. 

          Cansado de rolar pela cama, levantou-se, foi à cozinha, tomou um copo de água e sentou-se na varanda.  A observação do ir e vir das ondas do mar parecia lavar a podridão dos pensamentos. 
Silhueta solitária cortou o cenário, andando pela calçada.  Anônimo popular?  Inocente?  Acusador?  Vítima?  O passado e a imagem do pai acudiram-no das angústias:  “não tem sentido qualquer um, só porque estudou com afinco, ir dominando as instituições da República através destes concursos públicos.  E a representação de classes?  Onde fica a tradição?  Afinal, o aperfeiçoamento vem com o exercício profissional, com a firmeza de uma educação esmerada e sólidos princípios morais.”  Assim, numa tarde de sábado, a banca do concurso público tomava uísque lá em casa com meu pai, enquanto eu copiava as respostas da prova nas folhas de papel almaço rubricadas. 
No começo dava medo.  Depois, pura rotina.  Quando a questão envolvia gente importante, era só reproduzir as últimas linhas dos memoriais que os advogados enviavam e lá estavam as sentenças com citações em Latim, Italiano e até em Alemão.  Era apenas decidir entre a melhor oferta.  Para a gentinha sem valor, chutava qualquer coisa: anexar não sei o quê aos autos, solicito informações e por aí vai.
  Os juízes corruptos, personagens de Graça Aranha em Canaã, tinham razão: Na miséria anda a Justiça. 
          Acabei corregedor da justiça e seria o próximo presidente desta corte.  Mas começaram os falatórios:  “O Conselho Superior vai considerar a candidatura uma afronta.  Já tem quase uma dúzia de colegas sendo investigados.  Tem envolvido com milícias, outros com vendas de sentença.  O negócio está feio.  E pra entornar o caldo, este processo no Tribunal Superior contra seis juízes que copiaram o gabarito do concurso público.  Está certo, só um é seu filho.  Mas os outros cinco colegas alegam que foi você, na condição de corregedor, quem deu uma prensa na banca e pegou o gabarito.  Se os filhos de vocês são tão ineptos e analfabetos que copiaram tudo igualzinho não é culpa nossa.  Assim é demais.  O que falam por aí é arrasador.  Ora, ora, seis provas iguais, ipsis literis”.
          “Para piorar a situação, aquela mulher andou dando entrevista na imprensa, lembrando que há trinta anos você participou da banca de um concurso para titular de cartório.  A prova era de múltipla escolha e mesmo assim cinco respostas do gabarito estavam erradas o que anularia a classificação dos sete primeiros colocados.  Justamente os... deixa pra lá.  Foi difícil segurar a situação alegando a soberania das decisões da banca e escutar os desaforos desta mulher que seria a primeira colocada: – um antro de corruptos e ainda por cima incompetentes.  Já pensou se mandássemos dar um sumiço nela?  Apareceria até a ONU por aqui.” 

          A cabeça fervilhava.  As mãos tremiam. Sessenta e cinco anos, obrigado a aposentar-se por motivos de saúde.  O pior era a fúria da Glorinha, preocupada com o futuro dos chás semanais neste belo escritório deixado pelo sogro.  As lombadas gravadas a ouro davam vida e nobreza à dinastia iniciada pelo pai do sogro e agora continuada pelo filho Paulinho, que teria – depois de tudo resolvido, assim queira Deus, como dizia Dona Glorinha – um retrato na galeria dos membros daquela Egrégia Corte de Justiça.

          “Tanto hoje como no passado, qualquer deslize no serviço público tem como resposta uma comissão de inquérito encarregada de uma “rigorosa e isenta apuração”.  A participação nesta comissão era a glória para aquele barnabé que assim justificava a sua ausência no trabalho.  O presidente da comissão tinha o privilégio de requisitar uma sala para reunir-se com os outros dois membros e uma datilógrafa que, com grande espírito público, acumulava as funções de Secretária da ComissãoPara garantir rigorosa apuração, com as sindicâncias necessárias, todos ficavam dispensados de freqüência ao trabalho e, após trinta dias, se ainda não tivessem um relatório conclusivo, pediam uma prorrogação que ia completando sessenta, noventa dias, e assim indefinidamentemais ou menos como nos pedidos de vista e engavetamentos dos processos no Tribunal Superior.  Em algumas repartições, como nos Correios e Telégrafos, o “rigorera tanto que mais da metade dos funcionários ficava sumida, participando de inquéritos, não havendo salas disponíveis para todosCom grandes sacrifícios reuniam-se em bares e praias
          Todo o palavrório era datilografado em papel ofício e as petições eram escritas de próprio punho em folhas de papel almaço pautado e terminavam invariavelmente com termos respeitosos como se digne conceder...
          Ah... havia também os carimbos, que valiam se fossem rubricados. 
          Com o aparecimento das canetas esferográficas, alguns burocratas recusavam assinaturas com esta novidade da escrita, alegando que os traços das assinaturas tinham a mesma largura, o que não acontecia com assinatura feita com uma caneta de pena.  Neste caso, as diferentes inclinações da caneta resultavam em diferentes larguras nos traçados, que dificilmente podiam ser reproduzidos.  Era um mundo de rigor e alta tecnologia!
          Para todo este rigor havia as exceções, infelizmente muito comuns.  Por exemplo, quando um Chefe de Serviço recebia um pedido encarecido dos escalões superiores para que fulano fosse poupado, já que se tratava de pessoa digna e cumpridora de suas obrigações não funcionais como familiaresComo proceder se as provas das falcatruas cometidas eram arrasadoras?  O jeito era consultar o proprietário de um paletó que ficava dependurado eternamente naquela cadeira vazia – algumas lojas vendiam um terno que vinha com uma calça e dois paletós, um para ser usado e outro para ser deixado no trabalho, mostrando assim a assiduidade de seu representado. 
          Logo que o dono do paletó chegava, acabava a agonia do dirigente público.  “Doutor, neste caso a solução é o carimbo torto”.  E assim, ao ser carimbada uma das páginas do “processo”, o carimbo era girado de modo a ficar tudo borrado, o que levava à sua anulação porgravesfalhas de procedimento. 
          Naqueles casos em que tudo estava “regularmente” carimbado, como proceder?  “Doutor a solução é a Cerimônia do Cafezinho”.  Desta forma, na solenidade de entrega do relatório da comissão, servia-se um cafezinho que, por um descuido “involuntário” de alguém, era derramado sobre a papelada, borrando as assinaturas que não eram feitas com canetas esferográficas.  Os envolvidos no inquérito acabavam elogiados e tudo terminava esquecido. 
          Hoje, como em uma refilmagem de antigas películas, o carimbo torto e as assinaturas borradas foram substituídos por senhas eletrônicas e certificações digitais fraudadas, e o funcionário do paletó empoeirado na cadeira, pelos modernos departamentos de TI – tecnologia da informação
          “Este reinado do novo carimbo torto cibernético é governado pela velha mentira, mais forte do que qualquer tecnologia.” 

          Baboseiras da Tese de Mestrado da Patricinha.  Puro mau gosto: “A Corrupção Através da História”. 
Pensando bem, quem sabe um carimbo torto não teria salvo minha carreira?

          Foi uma noite de insônia e sofrimento.  Amanhã esquecerei tudo.  Começarei vida nova.  Voltarei ao vôlei, aos velhos amigos do Clube de Tiro.  Vou até dar um trato nas duas novas aquisições: o Taurus Judge e a Glock. 
Este revólver, fabricado pela empresa brasileira Forjas Taurus, recebeu o prêmio Handgun of the Year 2008, patrocinado pela National Rifleman Association, em Louisville, estado de Kentucky, nos Estados Unidos. A arma foi batizada com o nome de judge (juiz) devido ao grande número de juízes que portam este modelo da Taurus nas salas dos tribunais norte-americanos – por ser um revólver poderoso para tiros de defesa a curta distância.  
Já a pistola Glock, vinda da Áustria, é a menina dos olhos de forças militares e comandos especiais.  O meu exemplar, de 9 mm, é privativo da Polícia Federal e Forças Armadas, sendo adaptado para atirar até sob a água.  É mortífera, mas muito segura com seu sistema “safe action” de três travas.  Construída com um polímero especial e conhecida como “a pistola de plástico”, é um terror para a segurança de aeroportos. 
A vergonha de ontem será, no amanhã, um ruidoso sucesso com a turma do tiro. 

          Amanhece.  O renascer.  Os primeiros raios de sol.  O começar de novo.  Apenas despertando nosso personagem, salvando-o de pavorosos sonhos.  O estrondo da Glock livrou-o da consciência.  Gritos desesperados de Dona Glorinha. 
          E aqui voltamos a Canaã: a tragédia acaba em justiça.