No ano de 212 a.C., após um cerco de dois anos à cidade de Siracusa, na Magna Grécia, atual Sicília, esta foi capturada pelas legiões romanas. Quando a casa de Arquimedes – que com seus engenhos ópticos e mecânicos retardou ao máximo a queda da cidade – foi invadida pelos romanos, ele estava no quintal desenhando na areia suas figuras e estudos geométricos, quando um dos soldados pisou sobre os mesmos. Noli tangere circulos meos (não toque em meus desenhos), exclamou Arquimedes em seu precário latim, sendo imediatamente morto por uma lança, que destruiu fisicamente este velho filósofo e matemático. Mas não conseguiu eliminar o seu acervo intelectual, que, atravessando os séculos, chegou até nós.







Neste blog republicaremos também artigos da minha coluna semanal BRASILIANA, do jornal MONTBLÄAT editado por FRITZ UTZERI.




sábado, 24 de março de 2012

Os Terninhos Vermelhos da Presidenta


         “A Nova Direita Brasileira” parece estar chegando a um esgotamento em sua capacidade de enganar e criar falsas realidades, mesmo com gigantescos investimentos na chamada imprensa-diário-oficial com suas Não Veja, Isto Não É, Fora de Época e Falácia Capital.  A revista Veja desta semana ainda insiste com uma entrevista, onde Dilma declara: “Não vou transigir com a corrupção”.  Afirmação tão crível como se acreditássemos que os terninhos vermelhos da “presidenta” asseguram sua verve revolucionária-progressista-socialista. 



Foto 1 – Chapa Branca ou Cinza?  Centro, Rio de Janeiro-RJ.  Foto T.Abritta, domingo, 11 de março de 2012 às 16 horas e 30 minutos. 



         O círculo de ferro da corrupção” envolvendo os três poderes da república começa a se romper e mesmo seus agentes plantados em tribunais superiores temem enfrentar a força da opinião pública. 

         Agora, acuados, partem para a repressão, perseguindo o povo que sofre nos precários sistemas de transportes públicos de trens, metrôs e barcas.  Nas obras do PAC e reivindicações trabalhistas de servidores públicos, sempre a violência da Força de Segurança Nacional e de tropas militares transformadas em milícias do poder.  Em certo sentido voltamos aos tempos da ditadura, com uma propaganda governamental tentando criar o mito do “Brasil potência mundial”.  Para isto Dilma mantém no oriente médio a fragata União, equipada com helicópteros, mergulhadores e os mais modernos equipamentos para “garantir” a paz.  Só não interceptam os submarinos israelenses, que ao arrepio das decisões das Nações Unidas, navegam equipados com artefatos nucleares, a par das três centenas de bombas nucleares de seus arsenais terrestres. 

         Enquanto isto, aqui na terrinha, submarinos afundam, sem nunca terem entrado em combate, porta aviões pegam fogo e bases na Antárctica explodem, envergonhando os brasileiros ao poluírem este continente. 

         Toda a nossa infra-estrutura está abandonada: estradas, hospitais, educação, segurança e forças armadas.  A prioridade é a geração de lucros e propinas para mover a máquina de poder, base do nosso “Capitalismo Reverso”, onde eficiência e livre iniciativa há muito foram esquecidas em nome de negociatas como mostradas nos meios de comunicação. 

Mas, recentemente, duas esperanças tomam corpo.  A primeira é a disposição da sociedade brasileira em não aceitar farsas jurídicas que assegurem a impunidade.  Para isto, já cresce um movimento de indignação e resistência civil, pregando a suspensão do pagamento de impostos, taxas e tarifas de serviços públicos que abastecem as entranhas da corrupção.

Estamos simplesmente diante de uma QUAESTIO FACTI, uma questão de fato, que é a corrupção nos oprimindo e se escondendo em privilégios jurídicos que deveriam facilitar a Justiça e não impedir a punição de culpados! Qualquer QUAESTIO JURI, como, por exemplo, alegar foro privilegiado e outras regalias  vão por terra diante de nossos princípios constitucionais. 

         O segundo dado importante é a disposição de setores da banda judiciária sadia em aplicar a Constituição em toda sua plenitude, pondo um ponto final em interpretações elásticas que sempre beneficiam os detentores do poder. 

         Neste sentido, os conceitos de crime continuado e ocultação de cadáveres aplicados aos crimes da ditadura, em breve se somarão ao fim da “Doutrina Lula” de que dirigentes públicos são inimputáveis. 

         Afinal, cadeia também foi feita para ministros, senadores, deputados e até desembargadores e presidentes que fecham os olhos para os crimes sob suas administrações. 

         Os primeiros sinais desta disposição podem ser vistos na denúncia contra os dirigentes da Chevron por um rosário de crimes. 

         Em breve terminarão as tais “rigorosas investigações” determinadas pela “presidenta” aos suspeitos de chefiarem órgãos dominados por corruptos.  Com o fim destas farsas, os dirigentes públicos serão simplesmente os primeiros a serem indiciados, como Lula deveria ter sido responsabilizado no episódio dos mensaleiros. 


domingo, 11 de março de 2012

arquivo_reverso.com


 Criança, medo do homem vento
rugia num zumbido vermelho
nas tempestades árvores sacudiam
janelas batiam nos passos de quilométrico andar.

Jovem, o medo da termodinâmica morte térmica
da catástrofe nuclear
das bombas táticas no Vietnam ameaçavam jogar
da ditadura militar.

Hoje, medo do FBI
na vida privada está a entrar
por um pirata todos vão pagar.

Documentos vai deletardelatar
arquivo nas nuvens
jamais voltar.




segunda-feira, 5 de março de 2012

CASSANDRA

         No próximo dia 8 de março será comemorado o Dia Internacional da Mulher.  Este dia foi instituído pelo I Congresso Internacional da Mulher, realizado em 1910, na Dinamarca, lembrando para sempre um terrível episódio ocorrido em 8 de março de 1857, em Nova York, quando em uma fábrica têxtil, 129 operárias entraram em greve reivindicando redução da jornada de trabalho e um salário igual ao dos homens.  A resposta dos patrões foi trancá-las no interior de uma das salas da fábrica, que foi incendiada carbonizando as operárias. 

         Décadas depois deste massacre, milhares de mulheres continuam sofrendo por este mundo afora, como se carregassem uma maldição imposta por deuses impiedosos, tal nas tragédias gregas.  Neste sentido o personagem mitológico Cassandra encarna o sofrimento feminino através dos tempos. 

         Cassandra, por não corresponder ao amor de Apolo, foi punida, perdendo a credibilidade de seu dom profético.  Era capaz de prever o futuro, alertar os homens das tragédias iminentes, mas nunca levada a sério.  Previu a Guerra de Troia, massacres e tiranias, sempre diante de ouvidos surdos, que não levaram a sério os seus vaticínios da destruição desta cidade e terminou sendo levada como despojo de guerra para Micenas, onde foi assassinada. 

         Portanto, o Dia Internacional da Mulher deveria ser uma oportunidade de romper com esta verdadeira maldição que acompanha as Cassandras contemporâneas, sofrendo em um mundo insensível e surdo aos seus lamentos e reivindicações.

Em oposição às manifestações oficiais por esta data, onde feminismo é criticar a superexposição na mídia dos sapatos Prada das mulheres do poder, prefiro marcar o Dia Internacional da Mulher por um protesto-homenagem-denúncia vindo de pontos extremos de nosso planeta, como a baixada fluminense e os contrafortes do Himalaia, na poética Darjeeling, na Índia. 

Da baixada fluminense vem o terrível depoimento de uma senhora na casa dos quarenta anos, mas com o rosto em frangalhos, esculpido pelo terror de seu cotidiano. 





         “Andei a noite toda procurando a minha menina, que disseram estar zanzando por umas bibocas pros lados de Niterói.  Encontrei ela jogada na rua, toda machucada, mas agradeci a Deus por estar viva.  A menina foi castigada por andar com os rapazes da comunidade rival.  Escapou por ser abobalhada (retardada), mas na sua amiga, que dava as ideias, deram uns tiros nas pernas e tacaram fogo.  não sofreu mais por que o chefe da boca era temente a Deus e acabou com a farra da moçada, estourando os miolos da infeliz.  Que Deus proteja a sua alma!”



         Da Índia, considerada por alguns um exemplo do triunfo do capitalismo desenvolvimentista, vem um singelo sorriso feminino que, a par de sua esperança, não deixa de mostrar a universalidade das brutalidades contra nossas Cassandras que falam, choram ou sorriem, sempre em um mundo de surdez (V. Figura 1).



         “O trem avançava vagarosamente, disputando os trilhos com vacas, pedestres e toda a sorte de veículos.  Na beira do caminho, farrapos humanos trabalhavam na chuva, quase que invisíveis dentro da neblina.  Quebravam e carregavam, cambaleantes, enormes pedras.  Pelas pequenas mãos machucadas e envoltas em trapos enlameados, vi que eram mulheres realizando um trabalho acima de sua capacidade física e em condições subumanas.  Não resisti, abandonei o trem e me aproximei.  Uma das mulheres, após descarregar suas pedras, afastou os panos encharcados que cobriam o seu rosto e deu um lindo sorriso, mostrando uma face jovem, cortada por profundas marcas de sofrimento, mas com grande feminilidade, exibindo adornos coloridos emoldurados por um casaco já surrado que cobria um delicado vestido.  A chuva escorria pela testa, destacando a marca vermelha dos deuses que a abandonaram.  Pensei ter perdido o trem, mas ao me voltar, todos estavam parados, desde os maquinistas até os passageiros, calados e consternados como se refletissem sobre aquela jovem anônima que parecia embalada pelo Coro da Oréstia de Ésquilo que repetia: A desgraça te faz corajosa.”





Figura 1 – A moça de Darjeeling, Índia.  Foto T.Abritta, 2007.

MARISA


         “Foi aqui.  Aqui esteve ela.  Estes leões de pedra, hoje decapitados, a contemplaram.  Esta fortaleza, um dia inexpugnável, agora um monte de ruínas.  Sua última visão.  Os séculos, sol, chuva e vento foram gastando-a.  Apenas o céu permanece igual.  Um conglomerado azul profundo, imenso e vasto.  Perto, as muralhas ciclópicas, que hoje, assim como antigamente, orientam o caminho para o portão sob o qual nenhum sangue brota.  Para as trevas.  Para o matadouro. E sozinha...”
(Cassandra, Christa Wolf)

Figura 1 – Porta dos Leões.  Micenas, Grécia.  Foto T.Abritta, 1990.


         A viatura corre, trepida, eu jogada de um lado para o outro, mãos algemadas pra trás, batendo com a cabeça sem nenhuma defesa.  A caçamba fede a urina, fezes, vômito, sangue e morte.  Todas nós sempre soubemos que seria assim.  Mas pensando bem, depois de passar cinco anos entre a boate e o quartinho dos fundos, conheci um mundo diferente.  Foi o melhor aniversário nos meus dezoito anos de existência.  O Detetive Jacaré não admitia indisciplina.  Já havia prometido que quando eu fosse de maior – pra não ter problemas com a Costumes nem com o Juiz de Menores – ia lá para a Avenida Atlântica.  Este era o sonho de todas.  Até lá, tinha que fazer a apresentação e depois atrair fregueses.  Era sempre o mesmo, todo santo dia.  Mas assim que entrou aquele playboy, dizendo que vinha dirigindo de Petrópolis e estava seco pra comprar cigarros, falando umas coisas e palavras que eu não entendia nada, me derreti toda.  Quando perguntou meu nome, falei que era Marisa.  Era este não.  Mas achava lindo aquele anúncio: “De mulher pra mulher, Mariiisa”  E tudo ficava rosa...  Que quartinho que nada!  Fomos lá nuns cantos que ele conhecia.  Falei que era artista, que ele podia fazer de tudo, até me bater.  Lindo quando disse: “em mulher não se bate nem com uma flor.”  Depois me pagou até cachorro quente e coca-cola.  Não posso dizer que estou arrependida.  Não sou a primeira nem serei a última a fugir daquela escravidão.  Dizem que tiram as algemas e mandam correr.  Depois acertam nos joelhos.  A condenada vai se arrastando com expressão de terror e eles falando que vão furar o rosto todinho com tiros pra não ser reconhecida – mas acho que é pra enfear mais como castigo.  Lembrei-me da aula de catecismo lá no Pará, antes de ser vendida: Padre Leonel dizendo que quebraram os joelhos de Jesus com um a barra de ferro para ele não apoiar os pés, ficando apenas dependurado pelas mãos pregadas na cruz.  Sem forças, respirando com dificuldade, morreu rápido, mas sofreu mais.  Quem sabe Nossa Senhora não me levaria, e eu não ressuscitaria para a vida eterna?  O Pastor disse que perdidas iam pro Inferno.  Não acredito nesta história não.  E o playboy, vai pro céu junto com Jacaré?  E Dona Rosário e todos os anjinhos abortados?  Não sei não.  Deve ser tudo conversa pra boi dormir.  Acho que já estou sentindo a presença da Virgem Santíssima. 



         A viatura parou.  A noite está fria.  A noite está estrelada.  Escuto a voz de Jacaré: “tira as algemas da vagabunda pô!”






          E sobre mim, silenciosa e triste,

         A Via Láctea se desenrolava

         Como um jorro de lágrimas ardentes... (*)

Notas:

(*). Fragmento de Via Láctea, Olavo Bilac.

 Conto publicado no livro "Cidades de Memórias".

Dia de São Francisco


         “Gosto mais é do amanhecer, mesmo acordando com a visão da menina.  A noite é pior.  Sempre mesmos sonhos.  Ela caindo, a cara dentro do bebedouro, o dedinho ainda pressionando, a água molhando seus cabelos.  Depois vai escorregando, devagarinho, como filme em câmera lenta, e cai no chão, tremendo com os olhos arregalados, até ficar imóvel na poça de sangue.  Pela manhã, apenas seu sorriso.  De uniforme, fitinha no cabelo – o retrato nos jornais no dia do enterro.  Matar criança não tem perdão.  Nunca serei perdoado.  É assim mesmo.  Até mulher e filhos foram embora.  Depois de doze anos de cadeia, ainda bem que sobrou meu sítio neste buraco afastado.  Senão ia acabar aceitando a proposta para morar na Divineia e ser segurança daquele coronel africano que veio para treinar traficantes.  Na cadeia não foi nada fácil.  No dia da chegada fui logo mostrando as garras.  Que líder coisa nenhuma.  Cortei sua garganta, meti a cabeça na privada imunda, arriei a calça enfiando-lhe um cabo de vassoura.  Mesmo com essa cena horrorosa, ainda tive que mandar mais dois engraçadinhos para o inferno até entenderem quem eu era.  Meu pai sempre falava: é melhor fazer academia de polícia do que ir para as forças armadas.  Você vai ganhar o mesmo e não tem que começar carreira nestes fins de mundo do Brasil, cheios de malária.  Acabou dando nisto.  O Major, que aprendeu a trabalhar comigo quando era aspirante, rindo: segurança de político?  Nem pensar, você está mais do que babado!”

         “A caminhada matinal é o melhor do dia.  Tudo ainda escuro, sozinho, nem com os santos podendo contar; apenas com o 38 enferrujado.  Nem raias mais tem.  O cano todo comido, tal minha vida.  Mesmo assim, é a hora em que penso com mais calma.  Na época do frio é até melhor.  Depois aparecem as primeiras casas, os moradores indo trabalhar: bom dia, senhor Tenente.  Não sei se é por educação ou medo.  Pego a van e vou pra luta.”

         “Chego primeiro.  Só arma barraca ambulante autorizado.  O Major falou: todo dia quero doismilzinhos na mão.  A sobra é sua paga.  Tenho que ser duro, senão perco a moral.  A turma só respeita pancadaria.  É assim a vida.  Tem dia que amoleço e tento ajudar.  Aquele desgraçado teve coragem de armar barraca fiado para pagar no final do mês.  Acabei deixando.  Ele vendia frutas no cruzamento perto da Cruz Vermelha, guardando a mercadoria nos gavetões refrigerados, lá junto com defuntos.  Quando o Instituto Médico Legal mudou, acabou no hora veja.” 

         “Trabalho mais covarde é do Sargento.  Controla guardadores de carros.  A firma ganha a concorrência e depois passa pra ele administrar.  Coloca um monte de mendigos, pivetes e bêbados, correndo de um lado para outro por um trocado qualquer, só pra cachaça ou crack.  O lucro é grande.”

         “Eu penando por aqui e o Coronel, já aposentado, no conforto da varanda em seu sítio.  Tem dia que penso em ir lá e acabar com todos.  Matar a família toda.  Acabar até com o cachorro.  O ódio é grande.  No dia do acontecido, o desgraçado, com sorriso zombeteiro, falou: trabalhou mal, agora vai ter que pagar o pato sozinho.  Afinal, você era o comandante.  Os soldados apenas cumpriam ordem é isto que o inquérito vai concluir.  A ideia era dar um susto no gerente do tráfico.  Na hora do recreio vocês davam uns tiros, quebravam os vidros e furavam a caixa d’água pondo a criançada para correr.  Traficante também tem mulher merendeira e filhos na escola.  Se não funcionasse, aí que íamos partir pra coisa pior.  O que não podia era um moleque qualquer dizer a um coronel que em ano de eleição não ia mandar nada pro batalhão, pois a Secretaria já estava centralizando o pedágio.  Isto é o fim dos tempos.” 

         “As professoras saíram correndo, chamando as crianças e, num segundo, tudo deserto.  Com o pátio vazio, ia só furar o bebedouro.  Mas a bobinha voltou correndo pra beber água antes da aula.  Puro azar.  Um balaço na coluna.  A imprensa toda com esta história de crime hediondo.” 

         “Enquanto patrulho a praça fico escutando as rezas vindas do Convento de São Francisco.  Tenho vontade de ir lá, me ajoelhar.  Pedir perdão.  Mas acho que não mereço não.   No máximo chego perto e fico escutando do lado de fora da porta.” 



                        Oh Senhor, faze de mim um instrumento da tua paz:

                        Onde há ódio, faze que eu leve Amor;

                        Onde há ofensa, que eu leve o Perdão;

                        Onde há discórdia, que eu leve União;

                        Onde há dúvida, que eu leve a Fé;

                        Onde há erro, que eu leve a Verdade;

                        Onde há desespero, que eu leve a Esperança;

                        Onde há tristeza, que eu leve a Alegria;

                        Onde há trevas, que eu leve a Luz.



         “Hoje, sempre fico mais animado.  É festa de São Francisco.  A praça lotada, o povaréu indo rezar, comprando mais, minha paga aumentando.”



         A gritaria cortou a paz da manhã festiva.  O aleijadinho estava dando banho no Sargento.  Cobrava o dobro pelo estacionamento.  Embolsava o lucro todo.  Miliciano não perdoa.  Quebrou as muletas do infeliz e metia-lhe pontapés. 

“Covardia no dia do Santo?  Nunca.  Empurrei o Sargento, livrando o menino todo ensanguentado.” 

Como não se põe a mão em homem, a resposta foi rápida.  Em via pública, nada de escândalos.  Não usou a Mauser.  Preferiu a 22 que levava presa na perna.  Único e certeiro tiro na artéria femoral – asséptico.

O Tenente, conhecedor de matar e morrer, apertou o furo com os dedos, mesmo sabendo inútil.  Cada um tem sua hora.  Esta era a sua.  Apenas alguns segundos.  Nem tempo para rezar um pedacinho de salverainha.  Só admirar o céu. 

O olhar passou pela silhueta de concreto dos prédios, que emoldurava o azul celeste, pousou no Convento de São Francisco, onde nunca entrara.  O trânsito parou.  Ambulantes silenciaram.  A ladainha do povo rezando:



            Oh Mestre, faze que eu procure menos

            Ser consolado do que consolar;

            Ser compreendido do que compreender;

            Ser amado do que amar.



Uns dizem que sorriu.  Para outros, simplesmente o suspiro da morte – a última golfada de ar abandonando os pulmões. 

Mas fato é que todos viram alguma coisa durante a reza final:



            Porquanto

            É dando que se recebe;

            É perdoando que se é perdoado;

            É morrendo que se ressuscita para a Vida Eterna.



Era dia de São Francisco. 

         Dia de Governador, Prefeito, Secretário rezar.

         Cardeal abençoar.



Nota:

Oração, São Francisco de Assis – Tradução de Manuel Bandeira.  Antologia Poética, Henriqueta Lisboa, Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro – 1961.

Conto publicado no livro "Cidades de Memórias".