No ano de 212 a.C., após um cerco de dois anos à cidade de Siracusa, na Magna Grécia, atual Sicília, esta foi capturada pelas legiões romanas. Quando a casa de Arquimedes – que com seus engenhos ópticos e mecânicos retardou ao máximo a queda da cidade – foi invadida pelos romanos, ele estava no quintal desenhando na areia suas figuras e estudos geométricos, quando um dos soldados pisou sobre os mesmos. Noli tangere circulos meos (não toque em meus desenhos), exclamou Arquimedes em seu precário latim, sendo imediatamente morto por uma lança, que destruiu fisicamente este velho filósofo e matemático. Mas não conseguiu eliminar o seu acervo intelectual, que, atravessando os séculos, chegou até nós.







Neste blog republicaremos também artigos da minha coluna semanal BRASILIANA, do jornal MONTBLÄAT editado por FRITZ UTZERI.




domingo, 29 de dezembro de 2019

A Sórdida Padaria do Lucrécio



          Que chuvarada!  Verdadeiro dilúvio.  Cortei caminho por Bonsucesso, acabei no Campo de São Cristóvão.  Lá me atrapalhei, errei a subida do viaduto para o Túnel Rebouças.  Acabei em imenso engarrafamento na Rua São Luiz Gonzaga, de volta em direção a Bonsucesso! 
          Em meio à lentidão do trânsito, como em outro mundo, aquele senhor, roupas surradas, longos cabelos brancos ensebados, olhava, mas não via.  Sentado no tamborete focava o infinito.  Em que pensaria?  O casaco de couro pareceu-me o mesmo – apenas mais acabado, como o dono.  A familiar sordidez no misto de padaria e botequim.  Era o Lucrécio.  Acenei, gritei.  Inútil.  Fantasmas povoam outras esferas. 
          Finalmente estacionei o carro.  Encontrei apenas o proprietário, cotovelos cravados no balcão engrossado pela sujeira, rosto amarelado pela iluminação mortiça.  Sentei-me num caixote, respirei o cheiro de urina de rato, o bolor pelas paredes.  Vi prateleiras vazias.  Pobreza e sordidez explícita transportando-me a um passado com outros aromas e sabores. 

          Sentados na grama, atentos ao sistema de som que transmitia uma palestra de Nelson Werneck Sodré.  O auditório do ISEB (1) estava lotado.  Marcelino, como sempre, atrapalhando com suas conversas sobre culturas orientais – nada meritório.  Apenas para impressionar as garotas: o zen-budismo... “O Marxista”, muito calado, ainda com dores, um braço e um dos pés engessados depois de sua recente “intervenção” por ocasião da cerimônia, no Cemitério São João Batista, em intenção aos mortos na tal de Intentona Comunista de 1935.  Hugo, sempre odiado por todos: vou duplicar o lucro da firma do papai com meus conhecimentos da mais-valia...  Cleber, até então calado, lamentava: meu pai é um agente provocador!  Cortou carro e mesada dizendo que comunista deve andar a pé.  Junto com o povo! 
          Lucrécio vivia como pensava: o imperialismo capitalista corrompe a juventude com cachorro-quente do Bobs e Coca-Cola.  Assim, excursionávamos pelas padarias do Rio, conhecendo deliciosos sanduíches de pernil e queijos gordurentos.
E eu?  Eu?  Eu sempre respondendo com argumentos “irrefutáveis”: ora bolas, vocês estão desvinculados da realidade! 

                                    1965, acervo Teócrito Abritta

          O trânsito melhorando, a fome apertando:
          – Tem água mineral com gás?
          – Com gás não.
          – Então uma sem gás.
          – Também não tem.
          – E pra comer?
          – Sanduíche de queijo.
          – Um, por favor.
          – Mas não tem pão.
          – Ah... então uma porção de queijo picado.
          – Mas não tem queijo.

          Definitivamente uma última trincheira.
          A sórdida padaria do Lucrécio!

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(1) Instituto Superior de Estudos Brasileiros, órgão do antigo Ministério da Educação e Esportes, criado pelo Presidente Juscelino Kubitschek, reunindo pensadores e intelectuais para discutir os problemas brasileiros.  Paralelamente havia palestras e cursos para a comunidade, em particular, para jovens estudantes.  Em primeiro de abril de 1964 foi totalmente destruído a golpes de baionetas por uma tropa de fuzileiros navais e sua biblioteca incendiada. 
(2) PSSC (ver na figura), Physical Science Study Committee, programa norte-americano para desenvolver o ensino de Ciências em uma forma mais atraente.  Todo o material deste projeto (livros, filmes, laboratórios, testes e treinamento de professores) foi lançado no Brasil, em 1963, pela Editora Universidade de Brasília em colaboração com a Unesco.