No ano de 212 a.C., após um cerco de dois anos à cidade de Siracusa, na Magna Grécia, atual Sicília, esta foi capturada pelas legiões romanas. Quando a casa de Arquimedes – que com seus engenhos ópticos e mecânicos retardou ao máximo a queda da cidade – foi invadida pelos romanos, ele estava no quintal desenhando na areia suas figuras e estudos geométricos, quando um dos soldados pisou sobre os mesmos. Noli tangere circulos meos (não toque em meus desenhos), exclamou Arquimedes em seu precário latim, sendo imediatamente morto por uma lança, que destruiu fisicamente este velho filósofo e matemático. Mas não conseguiu eliminar o seu acervo intelectual, que, atravessando os séculos, chegou até nós.







Neste blog republicaremos também artigos da minha coluna semanal BRASILIANA, do jornal MONTBLÄAT editado por FRITZ UTZERI.




quinta-feira, 5 de abril de 2012

Réquiem para Ninguém



Sexta feira, fim de tarde.  Mesmo assim bar vazio.  Deprimidos, todos seguiram do enterro direto para suas casas.  Mas Doutor Heráclito, Desembargador aposentado do Estado do Rio de Janeiro, não poderia deixar de comparecer e honrar o morto.  Afinal, seu lema era: “a vida continua”.  Depois de tanta bebida ordinária do modesto legado de Mendonça, lavava as tripas e alma com puro malte.  Não havia outro jeito.  Tinha que esvaziar o caixão e não poderia ir para o cemitério carregando as garrafas herdadas debaixo do braço. 

         “Pobre Mendonça.  Eu pelo menos deixarei para as futuras gerações aquela placa azinabrada nas paredes do Tribunal de Justiça de Niteroi.  E o falecido?  Em pouco tempo totalmente esquecido.  Nenhum parente, nenhum bem material – a não existência total.  Até a história da pedrada na testa de Maurício Lacerda, acabando com seu comício em Vassouras, será apagada. 

         “O médico já me disse que está na hora de trocar a pilha deste relógio.  Mas como perder preciosos dias de vida enfiado num hospital?”

         Todas as cadeiras viradas, baldes de água despejados no chão, assim ficou o nosso personagem até as vinte e duas horas quando o bar baixou as portas.  Antes, pediu mais uma dose de uísque para tomar com seus remédios.  Despediu-se da mesa, que mais parecia uma ilha.  Tomou o lotação, como sempre dormiu, acabando em Ipanema.  Pacientemente pegou o Estrada de Ferro-Leblon, retornando para a Rua Santa Clara em Copacabana, onde residia. 



         Enquanto Doutor Heráclito dorme, esquecendo a morte e preocupações com as pilhas de seu marca passo cardíaco, vamos contando esta história desde o começo. 



         Estamos nos anos 50 e tudo se passa em uma animado bar na Rua da Quitanda, onde se reuniam jovens promotores, juízes e advogados.  No fundo uns desenraizados que vinham do interior do Brasil ganhar a vida no Rio de Janeiro, Capital Federal.  Através de concursos públicos e muito esforço acabavam tirando os cargos tradicionalmente ocupados pelos filhos do poder. 

         Doutor Heráclito, não.  Chegou a Desembargador pelas mãos das elites fluminenses, uma das mais atrasadas do Brasil.  Herdeiro de grandes propriedades rurais, acabou perdendo tudo.  Simplesmente não se preocupava – era desprendido dos bens materiais.  “Deixa o povo com o tal de uso campião, como falam.  Na verdade, recuperam o que foi de seus antepassados.” 

Sua vida era os amigos e as “minhas queridas”, a quem presenteava com frascos de perfumes franceses e lencinhos de seda.  “Queira Deus que eu morra antes de acabar meu estoque de presentes” – sempre dizia. 

Nosso outro personagem, o Mendonça, é o que acabou de morrer.  Não temos muito que falar sobre ele: morava num cortiço no Santo Cristo, onde ocupava um quartinho alugado.  Vestia sempre o mesmo terno escuro – diziam que toda noite seus trajes eram limpos com um pano molhado e secados a ferro quente.  Pontualmente, às onze da manhã, entrava no bar, dependurava o chapéu, lia um jornal emprestado e, assim que chegavam os primeiros fregueses para o almoço, acabava ganhando sua única refeição diária.  Depois só bebidas.  Comida pra quê? 

         Mendonça e Doutor Heráclito: diferentes condições sociais, formação e origens.  Mas unidos pela idade e o prazer da bebida.  Sempre queridos pelos jovens judiciários que os acolhiam como pais ou talvez avôs. 



         As conversas no bar – verdadeiro refúgio – giravam entre temas jurídicos, política, literatura e, claro, mulheres e bebidas, temas preferidos do Doutor Heráclito, em particular seus amores por Luz del Fuego.  No fundo uma síntese das esperanças e modernidade da nossa capital federal. 

         Muitas noites terminavam com discussões entre nosso douto Desembargador e Mendonça: “Velho safado”.  “Baderneiro”.  Nada que uma noite de sono, ou um quase coma etílico, não curasse. 



         Hoje comemoravam a sentença vitoriosa daquele juiz, chamado – nos bastidores – por um grande jurista, de roceiro impertinente: “Os oito por cento que os patrões descontam dos empregados e não recolhem para o INPS são tipificados como apropriação indébita: roubo.  Logo, cadeia neles.  O Tribunal Federal de Recursos confirmou, e as notícias que chegam da Cinelândia são de que Supremo Tribunal Federal acaba de votar por unanimidade a prisão dos proprietários das barcas.” 

         “Sorte já estarem presos no Presídio da Frei Caneca.  Acontece uma insurreição popular em Niteroi.  Incendiaram a estação das barcas e agora estão pondo fogo na residência dos proprietários, lá em Icaraí.  Os familiares fugiram com a roupa do corpo!”

         “A fumaça está atravessando a baía, e as chamas iluminando o céu podem ser vistas da Praça XV!”



         Outro dia fizeram valer a ética.  Todos pagaram as contas e rumaram para o bar ao lado quando apareceu o Deputado Federal Tenório Cavalcante.  Por outro lado, adoravam o Deputado Paraibano contando suas campanhas eleitorais: “Esta facada aqui nas costas foi na eleição pra vereador.  A cicatriz na barriga, na campanha eleitoral de deputado estadual: trabalho de amadores.  Já esta nas costas, conheciam o ofício.  Quase me mataram.  Muita promessa pra eu estar aqui diante dos ilustres.  Meu primeiro projeto na Câmara Federal foi a construção de um açude, lá na fazenda, para este sofrido povo de Deus.” 

         Alguns eram considerados persona nom grata, jamais podendo atravessar a porta do bar: “Antes de ser advogado foi da Ordem Política.  Um dos torturadores da Olga Benário”.  “Quando seus processos caem na minha vara ele vai logo subestabelecendo, pois sabe que nem o Ministro da Justiça conseguirá que ele pise no meu gabinete”.

         Satisfação era quando Brito Broca aparecia por lá.  Poemas em papéis amarelados saíam dos bolsos, contos não publicados exibidos.  Sorrisos, conversas, dádivas para carreiras literárias esquecidas.  Na luta pela sobrevivência, o colorido das letras sufocado por cinzentos brocardos jurídicos. 



         Mas voltemos a nossa história inicial.  Mendonça morreu e Doutor Heráclito, o testamenteiro, tomava providências.  Trabalho não teria – o penico, o ferro de passar roupa e outras quinquilharias já deixadas em testamento para o senhorio.  Apenas algumas modestas dívidas a saldar.  O caixão já estava comprado e o enterro pago na Funerária Morte Feliz, lá de Niteroi.  Mendonça era previdente.  Pagou tudo em suaves prestações. 



         Quando o Doutor chegou no Santo Cristo, uma multidão o aguardava: crianças remelentas, mulheres buchudas, roupas remendadas, cachorros sarnentos, anotadores de bicho escondendo os talonários – respeito era bom.  As escadarias rangiam, o odor de urina de rato sufocando.  Frestas de portas se abriam, olhares curiosos, outros de espanto, mas todos de tristeza e miséria.  O Desembargador adentrava um mundo inimaginável. 

Desmontou as prateleiras do caixão, usado como depósito de garrafas, separou as vazias das duas ainda cheias.  Leu nos rótulos: Conhaque de Alcatrão de São João da Barra.  Pediu uns copos ao senhorio, encheu o seu com a bebida, e, a pretexto de uma dose para o santo, girou solenemente, despejando o conhaque no chão.  Afinal, um mínimo de assepsia era necessário.  E todos beberam.  Última homenagem a Mendonça, enquanto olhava a tampa do caixão apoiada em dois caixotes.  Outrora, usada como tábua de passar roupa.  Agora servindo de mesa, coberta por uma toalha de linholene, suportando a bandeja de plástico encardido e as duas garrafas já quase vazias. 


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