Como nos antigos jornais, tomemos uma
daquelas frases prontas para iniciar esta história:
A corrupção, aliada aos mais sórdidos sentimentos
humanos, é uma das chagas que o Homem há séculos tenta exterminar.
Todos de preto. Cochichavam pelos cantos em pequenos grupos
que se formavam. Alguns falavam um pouco
mais alto para serem notados: “um belo velório!”. A viúva dava ordens: coloque estas flores
aqui; na saída do féretro não se esqueçam do Adágio de Albinoni. A filha, Clarissa,
mostrava-se tão preocupada com o futuro que não conseguia fingir tristeza. Vez ou outra trocava olhares cúmplices com a
mãe, Dona Maria José. Alguns esqueciam
onde estavam e riam divertidamente. O
filho, Abel, parecia o único a sentir real tristeza. Assim que soube, largou os treinos para a
próxima apresentação na Opera de Paris,
onde estreará como primeiro bailarino.
No fim, perdoou o pai, esquecendo as humilhações sofridas quando
abandonou o curso de Direito.
“A vaga do Borba não é para magistrado
de carreira. É para advogado de notável saber
jurídico.”
“Pra cima da gente, Santoro, seu irmão
com aquele diploma amarelado vai confundir vade-mécum com vade retro. Passou a vida
‘legalizando’ grilagens e agora vai ser nosso colega?”
“Data
venia, mas para seu irmão vale aquela frase do Millôr: Advocacia era sua maneira legal de burlar a lei”.
“Bem, manda quem pode, obedece quem tem
juízo. Vou falar pela última vez: se ele
não arrumar um foro privilegiado vai cair nas mãos daquela raça ordinária de Procuradores
que estão a fim de nos ferrar. E sua
casa em Angra?”
“Santoro tem razão. Seu irmão assume, entra de licença médica e
fica enrolando pouco mais de um ano até cair na compulsória.”
“E ainda resolve o espólio deixado pelo
ilustre colega, arrumando um DAS pra Dona
Maria José e Clarissa, como assessoras especializadas.”
“Muito bonito. Mas o governador quer, no primeiro lugar da
lista tríplice, seu sobrinho, advogado da empresa de quentinhas. Primeiro passo na arrancada para plantar mais
um representante no Tribunal Superior na capital federal.”
“Esperamos que ele não ‘ganhe’ a
concorrência pra substituir nosso modesto lanchinho de salmão com caviar por
suas quentinhas de macarrão com asa de barata.”
“O governador se comprometeu a escolher
o primeiro nome. Mas se falhar o
acordado, vai qualquer um.”
“Este analfabeto não entende nada de Pacto Republicano – os três poderes
unidos contra inimigos comuns. É só
ameaçar vazar os nomes de seus correligionários processados em segredo de
justiça, que ele vem comer na nossa mão.”
“Sabe quem também está querendo uma
vaga? Aquele rábula, advogado do Senador
Diógenes. Eu brincando com aquela
história de casa na Zona Sul e casa na Zona Norte, e o desgraçado apareceu lá
no Méier pra pedir voto. E ainda ameaçou,
perguntando se preferia recebê-lo em Copacabana, com minha esposa servindo um
licorzinho de jenipapo!”
“Este povinho desgraçado critica, esta
imprensa corrupta acusa e tem toda esta gentinha que nem imagina como é difícil
tomar certas decisões.”
A noite avançava. Só os amigos mais chegados ficaram. A viúva roncava, Clarissa era consolada na escura
sala ao lado por gentil cavalheiro que a fazia esquecer as dores da vida. Até Abel olhava impaciente para o
relógio.
Um triste amanhecer. Os últimos acordes de Albinoni.
Santoro nem chegou a escutar as rezas
do Cardeal – ataque cardíaco fulminante: “Revertere ad locum tuum”. “Partiu junto com seu amigo, o inestimável
Francisco Borba”. Assim foram as
palavras de um futuro membro desta Egrégia Corte, “a ser renovada com sangue
novo, graças às duas vagas da Providência Divina” – agora, a voz do governador,
mãos trêmulas, fungando, suando frio, só um pensamento: “ao pó retornarei!”.
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