Sexta
feira, fim de tarde. Mesmo assim bar
vazio. Deprimidos, todos seguiram do
enterro direto para suas casas. Mas
Doutor Heráclito, Desembargador aposentado do Estado do Rio de Janeiro, não
poderia deixar de comparecer e honrar o morto.
Afinal, seu lema era: “a vida continua”.
Depois de tanta bebida ordinária do modesto legado de Mendonça, lavava
as tripas e alma com puro malte. Não
havia outro jeito. Tinha que esvaziar o
caixão e não poderia ir para o cemitério carregando as garrafas herdadas
debaixo do braço.
“Pobre Mendonça. Eu pelo menos deixarei para as futuras
gerações aquela placa azinabrada nas paredes do Tribunal de Justiça de
Niteroi. E o falecido? Em pouco tempo totalmente esquecido. Nenhum parente, nenhum bem material – a não
existência total. Até a história da
pedrada na testa de Maurício Lacerda, acabando com seu comício em Vassouras,
será apagada.
“O médico já me disse que está na hora
de trocar a pilha deste relógio. Mas
como perder preciosos dias de vida enfiado num hospital?”
Todas as cadeiras viradas, baldes de
água despejados no chão, assim ficou o nosso personagem até as vinte e duas
horas quando o bar baixou as portas.
Antes, pediu mais uma dose de uísque para tomar com seus remédios. Despediu-se da mesa, que mais parecia uma
ilha. Tomou o lotação, como sempre
dormiu, acabando em Ipanema.
Pacientemente pegou o Estrada de Ferro-Leblon, retornando para a Rua Santa
Clara em Copacabana, onde residia.
Enquanto Doutor Heráclito dorme,
esquecendo a morte e preocupações com as pilhas de seu marca passo cardíaco,
vamos contando esta história desde o começo.
Estamos nos anos 50 e tudo se passa em
uma animado bar na Rua da Quitanda, onde se reuniam jovens promotores, juízes e
advogados. No fundo uns desenraizados
que vinham do interior do Brasil ganhar a vida no Rio de Janeiro, Capital
Federal. Através de concursos públicos e
muito esforço acabavam tirando os cargos tradicionalmente ocupados pelos filhos
do poder.
Doutor Heráclito, não. Chegou a Desembargador pelas mãos das elites
fluminenses, uma das mais atrasadas do Brasil.
Herdeiro de grandes propriedades rurais, acabou perdendo tudo. Simplesmente não se preocupava – era
desprendido dos bens materiais. “Deixa o
povo com o tal de uso campião, como
falam. Na verdade, recuperam o que foi
de seus antepassados.”
Sua
vida era os amigos e as “minhas queridas”, a quem presenteava com frascos de
perfumes franceses e lencinhos de seda.
“Queira Deus que eu morra antes de acabar meu estoque de presentes” –
sempre dizia.
Nosso
outro personagem, o Mendonça, é o que acabou de morrer. Não temos muito que falar sobre ele: morava
num cortiço no Santo Cristo, onde ocupava um quartinho alugado. Vestia sempre o mesmo terno escuro – diziam
que toda noite seus trajes eram limpos com um pano molhado e secados a ferro
quente. Pontualmente, às onze da manhã, entrava
no bar, dependurava o chapéu, lia um jornal emprestado e, assim que chegavam os
primeiros fregueses para o almoço, acabava ganhando sua única refeição diária. Depois só bebidas. Comida pra quê?
Mendonça e Doutor Heráclito: diferentes
condições sociais, formação e origens.
Mas unidos pela idade e o prazer da bebida. Sempre queridos pelos jovens judiciários que
os acolhiam como pais ou talvez avôs.
As conversas no bar – verdadeiro
refúgio – giravam entre temas jurídicos, política, literatura e, claro,
mulheres e bebidas, temas preferidos do Doutor Heráclito, em particular seus
amores por Luz del Fuego. No fundo uma
síntese das esperanças e modernidade da nossa capital federal.
Muitas noites terminavam com discussões
entre nosso douto Desembargador e Mendonça: “Velho safado”. “Baderneiro”.
Nada que uma noite de sono, ou um quase coma etílico, não curasse.
Hoje comemoravam a sentença vitoriosa
daquele juiz, chamado – nos bastidores – por um grande jurista, de roceiro
impertinente: “Os oito por cento que os patrões descontam dos empregados e não
recolhem para o INPS são tipificados
como apropriação indébita: roubo. Logo,
cadeia neles. O Tribunal Federal de Recursos confirmou, e as notícias que chegam da
Cinelândia são de que Supremo Tribunal Federal acaba de votar
por unanimidade a prisão dos proprietários das barcas.”
“Sorte já estarem presos no Presídio da Frei Caneca. Acontece uma insurreição popular em
Niteroi. Incendiaram a estação das
barcas e agora estão pondo fogo na residência dos proprietários, lá em Icaraí. Os familiares fugiram com a roupa do corpo!”
“A fumaça está atravessando a baía, e
as chamas iluminando o céu podem ser vistas da Praça XV!”
Outro dia fizeram valer a ética. Todos pagaram as contas e rumaram para o bar ao
lado quando apareceu o Deputado Federal Tenório Cavalcante. Por outro lado, adoravam o Deputado Paraibano contando suas campanhas
eleitorais: “Esta facada aqui nas costas foi na eleição pra vereador. A cicatriz na barriga, na campanha eleitoral
de deputado estadual: trabalho de amadores.
Já esta nas costas, conheciam o ofício.
Quase me mataram. Muita promessa
pra eu estar aqui diante dos ilustres.
Meu primeiro projeto na Câmara Federal foi a construção de um açude, lá
na fazenda, para este sofrido povo de Deus.”
Alguns eram considerados persona nom grata, jamais podendo
atravessar a porta do bar: “Antes de ser advogado foi da Ordem Política. Um dos
torturadores da Olga Benário”. “Quando
seus processos caem na minha vara ele vai logo subestabelecendo, pois sabe que
nem o Ministro da Justiça conseguirá que ele pise no meu gabinete”.
Satisfação era quando Brito Broca aparecia
por lá. Poemas em papéis amarelados saíam
dos bolsos, contos não publicados exibidos.
Sorrisos, conversas, dádivas para carreiras literárias esquecidas. Na luta pela sobrevivência, o colorido das
letras sufocado por cinzentos brocardos jurídicos.
Mas voltemos a nossa história
inicial. Mendonça morreu e Doutor
Heráclito, o testamenteiro, tomava providências. Trabalho não teria – o penico, o ferro de
passar roupa e outras quinquilharias já deixadas em testamento para o senhorio. Apenas algumas modestas dívidas a
saldar. O caixão já estava comprado e o
enterro pago na Funerária Morte Feliz,
lá de Niteroi. Mendonça era
previdente. Pagou tudo em suaves
prestações.
Quando o Doutor chegou no Santo Cristo,
uma multidão o aguardava: crianças remelentas, mulheres buchudas, roupas
remendadas, cachorros sarnentos, anotadores de bicho escondendo os talonários –
respeito era bom. As escadarias rangiam,
o odor de urina de rato sufocando. Frestas
de portas se abriam, olhares curiosos, outros de espanto, mas todos de tristeza
e miséria. O Desembargador adentrava um
mundo inimaginável.
Desmontou
as prateleiras do caixão, usado como depósito de garrafas, separou as vazias
das duas ainda cheias. Leu nos rótulos: Conhaque de Alcatrão de São João da Barra. Pediu uns copos ao senhorio, encheu o seu com
a bebida, e, a pretexto de uma dose para o santo, girou solenemente, despejando
o conhaque no chão. Afinal, um mínimo de
assepsia era necessário. E todos
beberam. Última homenagem a Mendonça,
enquanto olhava a tampa do caixão apoiada em dois caixotes. Outrora, usada como tábua de passar
roupa. Agora servindo de mesa, coberta
por uma toalha de linholene, suportando a bandeja de plástico encardido e as
duas garrafas já quase vazias.