No ano de 212 a.C., após um cerco de dois anos à cidade de Siracusa, na Magna Grécia, atual Sicília, esta foi capturada pelas legiões romanas. Quando a casa de Arquimedes – que com seus engenhos ópticos e mecânicos retardou ao máximo a queda da cidade – foi invadida pelos romanos, ele estava no quintal desenhando na areia suas figuras e estudos geométricos, quando um dos soldados pisou sobre os mesmos. Noli tangere circulos meos (não toque em meus desenhos), exclamou Arquimedes em seu precário latim, sendo imediatamente morto por uma lança, que destruiu fisicamente este velho filósofo e matemático. Mas não conseguiu eliminar o seu acervo intelectual, que, atravessando os séculos, chegou até nós.







Neste blog republicaremos também artigos da minha coluna semanal BRASILIANA, do jornal MONTBLÄAT editado por FRITZ UTZERI.




quinta-feira, 18 de março de 2021

Imaginação e Obsessão


          Não sei o que pode estar acontecendo.  Uma encomenda Sedex, Belo Horizonte-Rio, leva no máximo três dias para chegar.  Já faz uma semana.  Por aqui o correio não aparece há dois dias.  Bem, dizem que é a greve de ônibus. 

As aspas foram culpadas por tudo isto.  Quando ela escreveu que, além da Antologia, enviaria uma “coisinha” mineira que não era cachaça nem pão de queijo, começou a minha curiosidade.  Depois angústia, agora verdadeira obsessão.  As aspas davam um sentido conotativo que me intrigava.  Perdida a razão, pensamentos começam a ficar confusos, realidades são criadas.  A imaginação concretiza-se.

Mero símbolo linguístico-gráfico.  Mas tão significante. 

As aspas foram culpadas...

 

          Fui selecionada para a Antologia de Outono.  No lançamento, todos se reuniram no Parque, concertos de música clássica, coral e a leitura dos poemas.  Fui também escolhida para proferir as palavras de abertura.  Verdadeira maravilha a cerimônia. 

          Fiz um agradecimento para você, como parte das pessoas que me fizeram pensar a Literatura e usei nas minhas palavras suas sugestões que resultaram nos meus poemas:

          “Outono é uma estação do ano, marca no ritmo da Natureza.  Folhas secam, galhos nus, hora de recolhimento, de descanso para enfrentar as dificuldades da próxima estação.  Tempos de migração para milhares de aves que atravessam o Mundo com as mudanças do clima.”

          “Que tal um paralelo entre a vida e o ritmo da Natureza?”

          “Observe as árvores, arvore!”

          “Deixe os pensamentos ‘migrarem’, invadirem seu íntimo, traírem seus segredos!”

 

          Agradecida, seguem fotos em anexo.

 

          Seria apena mero registro visual de uma cerimônia campestre-literária-festiva.  Mas havia as aspas da “coisinha” e o caráter conotativo.  As imagens certamente traziam significados ocultos.  Ampliei-as em uma grande tela de computador, esmiuçando cada detalhe.         Não a imaginava tão jovem.  Que idade teria?  Entre quarenta e cinquenta?  Não sei.  Prefiro dizer: jovem senhora de idade indefinida. 

          Era muito bonita.  Longos cabelos negros, cintura fina, insinuantes sinuosas curvas.  A elegância do vestir valorizava o corpo.  Casaquinho de veludo claro com textura e talhe fashion.  Bolsa de design a tiracolo.  Blusa cintada com fiapos nas bordas – pequeno toque de informalidade.  Longa saia justa indo até os pés, feita de um tecido que delineava o corpo. 

          Estas definições de “cenários” pelo menos me distraíam, atraíam, fazendo-me esquecer um pouco da “coisinha” que a qualquer hora bateria na porta.

          As observações trouxeram-me lembranças de Proust:

 

          “Aquela fotografia era como um encontro a mais acrescentado aos que já tivera com a Senhora Duquesa de Guermantes.  Melhor ainda, um encontro prolongado, como se num brusco progresso em nossas relações, ela tivesse parado junto a mim, deixando pela primeira vez olhar à vontade aquela pinta na face, aquele maneio de nuca, aquele canto de sobrancelhas, assim como o recatado colo e braços.  Para mim, verdadeira graça.  Voluptuosa descoberta.  Aquelas linhas que me pareciam quase proibidas de olhar, poderia estudá-las aqui como num tratado da única geometria valorosa para mim.”

 

          O lindo sorriso invadindo a tela.  Aproximando aqueles olhos até sentir seu arfar, via um quê de tristeza.  No fundo é desta multiplicidade de sentimentos que nasce a criatividade poética.

          Rolei a imagem passando pelos ombros, braços.  Deslizei as mãos pela delgada cintura.  Já misturava o real e imaginário. 

          A sinuosidade dos quadris, ancas, pernas.  Perfeição de formas, valorosa geometria.

          A pulsação acelerando, vista turva.  Abandonava perigosamente o mundo real.

                    Despertei com o iPad anunciando a chegada de nova mensagem:

 

          Estou rastreando a encomenda.  A “coisinha” já está em processo de entrega.  Hoje deve recebê-la. 

 

Cambaleante, fui atender o interfone, seguido pelo onisciente olhar.

 

          Chegou!  Agora em minhas mãos!

Uma colorida caixa azul, toda etiquetada, escrita a mão com marcantes letras. Dentro, um envelope de papel metalizado guardava a antologia e uma caixa de madeira preta: a "coisinha".

No livro, os poemas e doce dedicatória.

Na caixa, uma rocha acompanhada das palavras: Para você, um pedacinho do Rio São Francisco.

 

          Ainda rastreado por aquele olhar, nova mensagem:

 

Não falei que era só uma coisinha, grande é o prazer de lhe enviar, tão importante tem sido nesta minha trajetória, seu apoio.

Admirar e catar pedras são manias que trago desde menina.

Segue imagem da rocha no lugar de origem.  São terrenos em camadas, que vão se desmanchando, formados em fundo de lagos.  O lugar é bem interessante e sugestivo.

Lá pisando ou sentada, solitária pensava e sentia a importância do tempo e o trabalho das águas.

"Eternidade".

 

          Interessante como sonhos podem confundir-se com a realidade, mesmo alguns segundos após sermos despertados por estridentes ruídos de tablets e interfones.

          Emocionado pelo original presente, agradeci formalmente a gentileza da lembrança.

 

          Mas as aspas, lá ainda estavam em “Eternidade”.

          Como diz a sabedoria popular:

          “Aí tem coisa”

A “coisinha”.

Do livro não publicado, "Transparências" 

Teócrito Abritta, 2014. 



 

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