Não sei o que pode estar
acontecendo. Uma encomenda Sedex, Belo Horizonte-Rio, leva no
máximo três dias para chegar. Já faz uma
semana. Por aqui o correio não aparece há
dois dias. Bem, dizem que é a greve de
ônibus.
As
aspas foram culpadas por tudo isto.
Quando ela escreveu que, além da Antologia, enviaria uma “coisinha”
mineira que não era cachaça nem pão de queijo, começou a minha
curiosidade. Depois angústia, agora
verdadeira obsessão. As aspas davam um
sentido conotativo que me intrigava.
Perdida a razão, pensamentos começam a ficar confusos, realidades são
criadas. A imaginação concretiza-se.
Mero
símbolo linguístico-gráfico. Mas tão
significante.
As
aspas foram culpadas...
Fui
selecionada para a Antologia de Outono.
No lançamento, todos se reuniram no Parque, concertos de música
clássica, coral e a leitura dos poemas.
Fui também escolhida para proferir as palavras de abertura. Verdadeira maravilha a cerimônia.
Fiz
um agradecimento para você, como parte das pessoas que me fizeram pensar a
Literatura e usei nas minhas palavras suas sugestões que resultaram nos meus
poemas:
“Outono
é uma estação do ano, marca no ritmo da Natureza. Folhas secam, galhos nus, hora de
recolhimento, de descanso para enfrentar as dificuldades da próxima
estação. Tempos de migração para
milhares de aves que atravessam o Mundo com as mudanças do clima.”
“Que
tal um paralelo entre a vida e o ritmo da Natureza?”
“Observe
as árvores, arvore!”
“Deixe
os pensamentos ‘migrarem’, invadirem seu íntimo, traírem seus segredos!”
Agradecida,
seguem fotos em anexo.
Seria apena mero registro visual de uma
cerimônia campestre-literária-festiva.
Mas havia as aspas da “coisinha” e o caráter conotativo. As imagens certamente traziam significados
ocultos. Ampliei-as em uma grande tela
de computador, esmiuçando cada detalhe. Não a imaginava tão jovem. Que idade teria? Entre quarenta e cinquenta? Não sei.
Prefiro dizer: jovem senhora de idade indefinida.
Era muito bonita. Longos cabelos negros, cintura fina,
insinuantes sinuosas curvas. A elegância
do vestir valorizava o corpo. Casaquinho
de veludo claro com textura e talhe fashion. Bolsa de design
a tiracolo. Blusa cintada com fiapos nas
bordas – pequeno toque de informalidade.
Longa saia justa indo até os pés, feita de um tecido que delineava o
corpo.
Estas definições de “cenários” pelo menos
me distraíam, atraíam, fazendo-me esquecer um pouco da “coisinha” que a
qualquer hora bateria na porta.
As observações trouxeram-me lembranças
de Proust:
“Aquela
fotografia era como um encontro a mais acrescentado aos que já tivera com a Senhora
Duquesa de Guermantes. Melhor ainda, um
encontro prolongado, como se num brusco progresso em nossas relações, ela
tivesse parado junto a mim, deixando pela primeira vez olhar à vontade aquela
pinta na face, aquele maneio de nuca, aquele canto de sobrancelhas, assim como
o recatado colo e braços. Para mim,
verdadeira graça. Voluptuosa
descoberta. Aquelas linhas que me
pareciam quase proibidas de olhar, poderia estudá-las aqui como num tratado da
única geometria valorosa para mim.”
O lindo sorriso invadindo a tela. Aproximando aqueles olhos até sentir seu arfar,
via um quê de tristeza. No fundo é desta
multiplicidade de sentimentos que nasce a criatividade poética.
Rolei a imagem passando pelos ombros,
braços. Deslizei as mãos pela delgada
cintura. Já misturava o real e
imaginário.
A sinuosidade dos quadris, ancas,
pernas. Perfeição de formas, valorosa
geometria.
A pulsação acelerando, vista turva. Abandonava perigosamente o mundo real.
Despertei
com o iPad anunciando a chegada de nova mensagem:
Estou
rastreando a encomenda. A “coisinha” já
está em processo de entrega. Hoje deve
recebê-la.
Cambaleante, fui atender o interfone, seguido pelo
onisciente olhar.
Chegou! Agora em minhas mãos!
Uma colorida caixa azul,
toda etiquetada, escrita a mão com marcantes letras. Dentro, um envelope de
papel metalizado guardava a antologia e uma caixa de madeira preta: a
"coisinha".
No livro, os poemas e
doce dedicatória.
Na caixa, uma rocha
acompanhada das palavras: Para você, um pedacinho do Rio São Francisco.
Ainda
rastreado por aquele olhar, nova mensagem:
Não falei que era só uma
coisinha, grande é o prazer de lhe enviar, tão importante tem sido nesta minha
trajetória, seu apoio.
Admirar e catar pedras
são manias que trago desde menina.
Segue imagem da rocha no
lugar de origem. São terrenos em
camadas, que vão se desmanchando, formados em fundo de lagos. O lugar é bem interessante e sugestivo.
Lá pisando ou sentada,
solitária pensava e sentia a importância do tempo e o trabalho das águas.
"Eternidade".
Interessante
como sonhos podem confundir-se com a realidade, mesmo alguns segundos após
sermos despertados por estridentes ruídos de tablets e interfones.
Emocionado
pelo original presente, agradeci formalmente a gentileza da lembrança.
Mas as
aspas, lá ainda estavam em “Eternidade”.
Como
diz a sabedoria popular:
“Aí
tem coisa”
A
“coisinha”.
Do livro não publicado, "Transparências"
Teócrito Abritta, 2014.