No ano de 212 a.C., após um cerco de dois anos à cidade de Siracusa, na Magna Grécia, atual Sicília, esta foi capturada pelas legiões romanas. Quando a casa de Arquimedes – que com seus engenhos ópticos e mecânicos retardou ao máximo a queda da cidade – foi invadida pelos romanos, ele estava no quintal desenhando na areia suas figuras e estudos geométricos, quando um dos soldados pisou sobre os mesmos. Noli tangere circulos meos (não toque em meus desenhos), exclamou Arquimedes em seu precário latim, sendo imediatamente morto por uma lança, que destruiu fisicamente este velho filósofo e matemático. Mas não conseguiu eliminar o seu acervo intelectual, que, atravessando os séculos, chegou até nós.







Neste blog republicaremos também artigos da minha coluna semanal BRASILIANA, do jornal MONTBLÄAT editado por FRITZ UTZERI.




domingo, 23 de novembro de 2014

O Sangue Seca


                    Este artigo foi publicado em 2011 no Montbläat.  Agora estamos republicando-o com o fac símile da entrevista com Pablo Neruda que foi citada. 
          Foi feita também uma revisão, sendo o artigo reescrito dentro do espírito de um gênero entre a crônica e um ensaio literário sobre a Luta e o Martírio pela Liberdade.


          Com a morte de Ernesto Sabato (1911-2011) o Mundo ficou menor.  Cresceram os “intelectuais” que só sobrevivem à sombra do poder.  Diminuiu o número daqueles que são as testemunhas, os mártires de uma época.  Como uma homenagem a este Ernesto, republico o artigo abaixo, lembrando tantos outros que estranharam este mundo de violências e injustiças.  Uns com a força e beleza das palavras, da poesia.  Outros com o sangue da própria vida.

          Que importa o lugar em que a morte nos surpreenderá: que ela seja bem vinda, se nosso grito de guerra for ouvido, se outra mão se erguer para empunhar nossas armas e se outros homens se levantarem para entoar os cantos fúnebres, sobre o crepitar das metralhadoras e dos novos gritos de guerra e de vitória.

          A frase acima encerra o documento intitulado Criar dois, três ... vários Vietnames, eis a palavra de ordem, enviado por Ernesto Che Guevara ao Secretário-Executivo da Organização de Solidariedade dos Povos da África, da Ásia e da América Latina e que foi divulgado em 16 de abril de 1967.  Podemos dizer que este documento sintetizava as grandes esperanças de criarmos um mundo mais justo e progressista na face da terra, mesmo à custa irreparável da morte e perda de grandes talentos de uma juventude idealista.  Nessa época Guevara lutava liderando um pequeno grupo de guerrilheiros na Bolívia e poucos meses depois, em 8 de outubro de 1967, foi preso e executado barbaramente no dia seguinte, encerrando a sua existência aos 39 anos de idade.  O dia a dia de sua luta na Bolívia ficou registrado no chamado Diário de Che Guevara.  A leitura destes documentos é importante para compreendermos a personalidade do líder guerrilheiro, atualmente tão vilipendiado por certa imprensa.
Os jovens que se encantaram e emocionaram com a candura e espírito de solidariedade humana de Guevara, mostrados no filme Diários de Motocicleta, de Walter Salles, deveriam ler os documentos acima e ver que uma sólida ideologia e princípios éticos podem manter-nos jovens e idealistas por toda vidaEm seus diários Che deixa registrado não os seus errosum dos quais foi acreditar que podia salvar um povo com uma cultura diferente, nem sequer falando espanhol, pois falavam quéchua, aymara ou guarani –, como mostra a sua aceitação fatalista desta gente simples, que não o compreendia e não o aceitava, delatando-o, traindo-o e vendendo as vidas dos jovens e idealistas guerrilheiros ao exército boliviano, que era a mesma força de repressão que massacrava esses índios a serviço de companhias multinacionaisMas Guevara estoicamente aceitava essa realidade, negando-se a agir, por exemplo, como as hordas petistas que atacaram violentamente os “descamisados” de Collor – hoje aliado de Dilma –, diante da então derrota eleitoral de Lula para aquele outrora chamado caçador de marajás.  E agora, com o petismo no poder, parecem procurar uma vingança eterna, mantendo uma população analfabeta, sofrendo nas filas dos postos médicos e sob o jugo da criminalidade, mas fanatizados pelo populismo que os transformou em bons eleitores e passiva carneirada desta nova direita. 


Feira de Sacsili,  Equador.  Foto T.Abritta, 2000.

          Nesta década, os anos 60, pipocaram pelo mundo afora vários movimentos democráticos e progressistas que foram exterminados com extrema violência, desaguando neste mundo horroroso em que vivemos atualmente.  Na tão sofrida África, no pobre Zaire dos dias de hoje houve uma eleição democrática após a emancipação do Congo Belga.  Mas o Primeiro Ministro eleito, Patrício Lumumba, acabou assassinado e os “civilizados” europeus e belgas, enviaram uma tropa de seis mil monstros para espalhar a violência, a título de defender inconfessáveis interesses econômicosEntretanto o patriotismo falou mais alto, eclodindo nestas paragens um dos mais belos movimentos revolucionários, que unia as tradições tribais à modernidade de jovens intelectuais africanos, que terminavam seus doutorados em grandes universidades européias como a Sorbonne (aquela tão invejada e execrada por Lula).  Havia intelectuais como Gaston Soumialot e Pierre Mulele que se uniam aos Simbas – que em Swahili significa leõespara combater pela causa comum que era a liberdade.  Os Simbas eram guerreiros imortais que podiam ser abatidos momentaneamente, mas sempre ressuscitavam para defender suas famílias, sua cultura e seu paísMas toda esta poesia do movimento não resistiu a um grande massacre promovido por um conluio da Bélgica, que enviou um grupo de pára-quedistas, dos Estados Unidos, que enviou aviões pilotados por mercenários cubanos e das colunas de mercenários comandadas pelo coronel Lamouline.  Ah, estes nomes e fatos não deveriam ser apagados da História.  A repressão não poupou ninguém, Pierre Mulele, que era o Ministro da Educação do governo revolucionário, morreu sob torturas, tendo seus olhos arrancados das órbitas, seus lábios dilacerados por alicate e seus órgãos sexuais decepados, morrendo lentamente com a perda de sangue.
          Mas massacres piores aconteceram.  A Indonésia nesta época era uma grande esperança de democracia e desenvolvimento humano, sob a liderança de Sukarno, um dos líderes do terceiro mundoMas as forças do atraso reagiram rápido e promoveram um massacre, que resultou em 700 mil mortos, inclusive crianças, pois a súcia de direita dizia que não podia deixar sementes de futuros comunistasTudo começou com uma carnificina de origem política, para terminar em uma loucura coletiva onde cabeças eram usadas como marcos da quilometragem das estradas, que para os muçulmanos esta seria uma punição além das fronteiras da morte, pois não poderiam entrar no Paraíso de Alá sem suas cabeçasAinda com os rios tingidos de sangue, o Japão saudou o novo governo de Jacarta e os dirigentes britânicos e americanos congratularam-se, alegando que nada era mais reconfortante para os países ocidentais do que ver o segundo produtor mundial de borracha e quarto produtor de arroz e de estanho renovar tradicionais laços de amizade e comércio, pois nas mãos dos novos chefes de Estado o sangue, decididamente, seca rápido.
          Com esses exemplos de extrema violência, marcados pela morte de Che Guevara, há quarenta anos, devemos olhar o mundo de hoje e não aceitar a banalização da violência e do terrorismo de Estado promovido por grandes NaçõesAfinal de conta muitos daqueles que viviam e sofriam na década de sessenta, não se abatiam diante dos retrocessos históricos, sempre mostrando esperançaNos Estados Unidos a violência racial da Ku Klux Klan encontrava resposta nos poemas de Langston Hughes, um dos bardos da Poesia da Negritude, que falava bem alto: Eu também canto a América.  No outro extremo deste continente americano, em Isla Negra, Pablo Neruda declarava em entrevista: ...outras cores existem no panorama do mundoQuem pode esquecer a cor do sangue humano derramado inutilmente no Vietname?  E a cor das aldeias queimadas pelo napalm?...São Domingos continua dividido, ultrajado e invadido.  ... estamos em janeiro de 1966.  Neste ano talvez eu consiga alcançar os sessenta e dois anos de minha vida e continuo acreditando na possibilidade do amor.  Tenho a certeza do entendimento geral entre os seres humanos, que se dará a despeito das dores, do sangue e dos cristais quebrados (*) perdoem-me se creio que, apesar de tudo, o mundo brilha infinitamente rosa, infinitamente azul.

(*) Pablo Neruda deu esta entrevista em sua residência em Isla Negra, Chile, após uma longa viagem por vários continentes, incluindo uma visita ao Rio de Janeiro.  Os cristais quebrados eram uma referência a um terremoto que causou grandes estragos em sua casa enquanto estava ausenteDurante a sua visita ao Rio de Janeiro, eu, com 19 anos de idade, tive a oportunidade de conhecê-lo na casa de um vizinho que o recepcionou discretamente, de modo a evitar a ira de nossa ditadura da época


Entrevista com Pablo Neruda, Folha da Semana, Fevereiro de 1966.



2 comentários:

  1. Na época em que foi publicado já gostei muito. Agora com a revisão e o artigo de Neruda ficou ainda melhor e continua mais que atual. A banalização da violência ainda nos assola e, quem sabe, mais ainda.

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  2. Parece que estamos vivendo dias terríveis, onde a violência e tortura viraram divertimentos para programas da "Globo". Como reverter isto?

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