Primeira noite neste apartamento. Não conseguia afundar no sono. Ainda
bem que amanhã é domingo. Com a
leitura, cada vez mais desperta. Pudera:
não era hora para As Cidades e as Serras de Eça de Queirós.
Onze badaladas do pêndulo. Nada
melhor do que um relógio antigo para quem cultive a graça das demoras. Um relógio que marque mais os outroras que os
agoras.
Os ponteiros, tal asas de morcego num
abre e fecha, a cada cleque cleque movem a noite. Nascem e dormem constelações. Pena,
invisíveis neste céu noturno encoberto pelo concreto.
Meia noite: ao quarto me recolho. Meu
Deus! E este morcego!
Aquietou-se apenas lendo singelas
palavras:
“Ditirambo Mineiro em
Prosa”
“Desculpem-me os mineiros. Para mim, Minas é queijo. Queijo com doce de leite, goiabada cascão, ou
doce de mamão.
Fresco, meia cura ou curado. Sempre apreciado, seja lá de cabra ou leite
de vaca. Só interessa o resultado.
Do Serro, da Alagoa. De Araxá ou da Canastra. Da Serra do Salitre – frio das montanhas,
cheio de manhas. Fino sabor rural,
poesia de campos, serras, causos.
Patrimônio Imaterial da Cultura
Nacional!”
Acordou sonhando. Pisou no quintal úmido pelo orvalho. Fria lambida de vento invadiu a
camisola. Amanhecia. O céu azulando. De longe algum galo cantou. O garnisé da vizinha respondeu.
Um
galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outro que com muitos
outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos para que uma tênue teia se
vá tecendo, entre todos os galos.
Bom
dia Dona Lica.
...dia
moça
– todos os dias assim. E olhe que não é
uma zeugma retórica. Come-se o “Bom”
pela economia mineira.
Em pouco tempo o badalar dos sinos
chamando para a missa das seis.
Despertou dos sonhos e sono. Ensolarada manhã de domingo. Vestiu o shortinho
de cintura alta, arrebitando-se no espelho.
Soltou os cabelos, vermelho nos lábios – desejável ar sexy.
Na rua, um bêbado retardatário solta
palavras que por aqui soam mais como elogio do que grosseria: “Pô que lombo!”. Cidade grande é assim.
Compra pão e jornal. No caminho vai lendo as notícias:
Foi preso Fulano de Tal, braço-direito
do traficante conhecido como “O Matemático”.
O bandido Joãozinho Olho de Vidro foi localizado... O Vice-Governador, alcunha de Pezão, afirmou
que conhece o Sicrano de Tal, já que também é o Secretário de Obras.
Entrou em casa, prostrou-se na poltrona.
Apenas música: Noturnos de Chopin.
Nota:
Fragmentos
intertextuais dos poemas: Relógio de
Pêndulo, de Cassiano Ricardo; O Morcego,
de Augusto dos Anjos e Tecendo a Manhã,
de João Cabral de Melo Neto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário