– Com aquela história de dez em pé e
vinte deitado, Luzete e as meninas faturam alto. Inda bem que tem a barranca pra se
encostar.
– Fala baixo, Deusimar, se não ela vai
inventar o quinze no barranco!
– Nunca vi muié da vida ganhar mais que
garimpeiro. Vão ficando com todo ouro, e
agora com o diesel que revendem.
– É, Francelino, mas agora a moleza
acabou. Temos nove galões de óleo
escondidos aqui no mato, mais estes três que nós e Zé Erpídio vamos
levando. Amanhã as bombas vão funcionar
direto. Vamos lavar a terra. O ouro vai brilhar! Lili Gambá, Mariazinha do Cajá e até Carminha
Mortadela vão ter que esperar.
– Pena que Onofre e Ceará morreram e o
barco afundou todo furado de bala. Foi
pura maldade. Não tinha óleo pra tomar –
tudo já bem escondido – e eles já iam embora.
Estavam até no lado brasileiro do Oiapoque.
– Nós tinha mesmo que esperar, Zé
Erpídio, é a troca da guarda. O pessoal
da Legião Estrangeira, não só tem boa pontaria, como gosta de matar. O Exército tem aquele negócio de advertir com
alto-falante: vocês invadiram a
fronteira... e a turma nem aí.
– Pudera, quem entende língua de gringo?
– É, mas o óleo estava acabando, a
mineração parando.
– Não é melhor descansar, Zé Erpídio? Com este treme-treme ocê não vai longe!
– Já perdi a conta das malárias que
tive nestes anos de mato. Espero não ser
a última. Enquanto descanso, vou falando
sobre a vida que levei. Assim o tempo passa
e vocês abrem os olhos. Ainda são novos,
podem tomar outro rumo. Aqui, mais cedo
ou tarde, o caldo vai ferver. Agora
matam só no miúdo. É só olhar os
brasileiros escorraçados como cachorros doidos, do Paraguai, Bolívia, Venezuela
e agora no Suriname. Lá na Capital só
querem negócio com gringo e hermano.
Comecei muito novo, pelas mãos de um
tio mecânico. Consertava, ou melhor,
fazia remendos nas tubulações de água que comiam as barrancas.
De um lado o garimpo de Seu Orfeu e
Coice de Mula. Do outro seu Pavão.
Dona Eurídice – Professora Formada –
tinha uma filha com Seu Orfeu, a Orfídia.
Uma teteia de garota. Assim que
aprendi a ler e escrever, rabisquei na folha de caderno uma quadrinha lá da
minha terra e ofereci pra garota. Deu
uma grande confusão. Quase me mandaram
andar.
Dona Eurídice morreu de maleita. Logo depois enterravam Seu Orfeu. Dizem que foi tristeza.
Coice de Mula aproveitou e ficou com
todo o lado do rio.
Quando avisaram que Coice de Mula
estava leiloando Orfídia, não sei se foi o Divino ou o Demo quem guiou o
enxadão que partiu a cabeça do desgraçado.
No dia seguinte, seu Pavão mandou o Galindo – uma espécie de curandeiro
– descer de voadeira, uns dois dias rio abaixo, até encontrar um padre
missionário que vivia com uns índios.
Foi acertado o casamento, pelo rumo (1), de eu e Orfídia.
Não é que a menina era muito esperta e
tinha um monte de pepita de ouro dentro da caixinha de lápis de sua mãe?
Dos filhos, só vingou Orfeuzinho. Os outros... tudo anjinho...
Zé Erpídio tremia muito, sentindo tanto
frio deitado naquele mato úmido, que nem percebeu quando Deusimar e Francelino
esconderam seu galão de diesel, cuspiram nos seus dedos, limpando a lama pra
tirar as alianças de viúvo: esta é sua
última noite, com sorte o último amanhecer.
Se não aparecer parente cada um fica com uma aliança.
Sumiram na noite da mata escura...
Carregador de malas?
Sim. Vou contar tudinho. Zé Erpídio não sabia se
falava ou apenas pensava. Mas naquele
contar e recontar de sua vida, isto não tinha precisão de saber:
...Trabalhei muito.
Estudei foi muito. Tirei o Madureza
e Contabilidade. Morava em
apartamento. Orfeuzinho estudava no
colégio dos padres. Colégio
particular.
Todo mês ia ao Rio de Janeiro. Lá na empresa de engenharia nem esquentava
cadeira. O próprio diretor me entregava
a mala. Um carro esperava na
garagem. Só sossegava quando apeava do
avião e o Senador em pessoa punha a mão na alça da encomenda. Ficava esperando sentado numa saleta nos
fundos de sua casa: “escritório pras visitas importantes”, como dizia.
Tudo desandou quando o homem ficou cheio de
importâncias. Figura nacional, diziam todos:
“Some de vez, Zé Erpídio! Você sabe
demais”. Esfriei a cabeça, larguei umas
ideias que atormentavam e caí nestes fins de mundo. Pra aquietar o coração, repetia sem parar: “Orfeuzinho
é Advogado Formado. Doutor Orfeu Mendes!”
Pra quem nunca madrugou no mato o ruído é assustador. Parece o mundo vindo abaixo com os rugidos
dos bugios anunciando o amanhecer.
Poderíamos imaginar milhares, milhões.
Mas não passa de uma dúzia, o máximo em cada família. Cessando o ronco da macacada, cada pássaro
faz a saudação matinal. Gosto de
escutar. Nunca me acostumei. Sempre a mesma belezura.
Este piado é diferente!
É o aviso do Cricrió seringueiro (2). Quem sabe não me levam pro hospital na
cidade? Bobagem, Legionário e nós garimpeiro
é tudo igual. Morremos em solo
estrangeiro, longe da família.
Nossa
sina é morte e destruição.
E assim ficou o velho garimpeiro, morrendo
pouco a pouco, minuto a minuto, com os raios de sol tentando penetrar na
barreira verde de Castanheiras, Imbaúbas e Cumarus. As Pixaúbas e Barrigudas pareciam refrescar
ainda mais a sombra, emoldurada por um pau de Angelim e gigantesca Figueira
furando o teto da mata. A majestade da
vegetação não lamentava aquela morte iminente.
Poderia aplaudir. Preferia ser
neutra.
Tinha instantes em que a floresta
silenciava, como se para respirar.
Nestas horas, escutava-se o roer dos dentes das cotias quebrando ouriços
(3) e o morno som vindo dos assanhaços (4).
Agora o piado está perto demais. Rostos se aproximam: Meu nome é Zé Erpídio.
Estampidos de tiros... Vive la
France... Risos.
– Não se preocupe, Senador! Quando falo aqui de São Paulo a voz é
criptografada. O seu telefone faz o
processo inverso. Não adianta gravar a
conversa. O araponga não vai entender
nada. O que é? São estes negócios de informática. É tecnologia a serviço do progresso. Chega desta gentinha que não gosta de
dinheiro... Cheguei agora mesmo de Brasília.
Gostou da defesa? É Direito puro,
Teoria Jurídica pra cacete! Na verdade
enviei um “carregador de malas”. Um não,
foram vários. Disto o Senhor entende
bem. Denúncia anônima tem que anular o
processo e devolver todo o metro cúbico de dinheiro pra debaixo da cama da sua
“protegida”. Lei é lei. Se fosse um defunto? Esta é boa, Senador... Mas decisão jurídica não
se discute. Cumpre-se! O defunto ia ficar fedendo debaixo da sua
cama. Desculpe. Da cama da sua “protegida...”, Senador.
– Doutor Orféééééo... o funcionário do
Itamaraty disse que não vai esperar mais e que está se lixando se o caso acabar
na Imprensa.
– A fronteira é na metade do rio. O corpo estava na floresta, do outro
lado. Várias perfurações. Uma rajada de fuzil-metralhadora. A embaixada quer saber se envia o morto. Enviaram também esta folha de caderno com um
“bilhete”.
– Meu caro, obrigado pela atenção. Não conheço este tipo de gente. Trata-se de um homônimo. Quanto a este papel, pode deixar que rasgo e
jogo na lixeira. Esta história de
quadrinha com o nome de minha mãe é uma infâmia da Direita que quer prejudicar
o Governo.
Antes de sumir com o “bilhete” imundo,
a secretária não resistiu a uma olhadela:
Querida Orfídia
Quem me dera fosses árvore
E eu pudesse ser cipó
Pra viver enroladinho
No teu corpo dando nó.
Zé Erpídio
Notas:
1. Com as dificuldades
de deslocamento do padre ou dos noivos, no “casamento pelo rumo” é acertada uma
hora e o sacerdote realiza a cerimônia voltado para o rumo onde estão os
noivos, familiares e amigos.
2. Também conhecido
como Peito de aço ou Biscateiro. Este
pássaro, com um forte piado, avisa quando o perigo penetra na floresta – ser
humano ou uma onça, por exemplo.
3. Também conhecido
como cabaça. Fruto da castanheira,
castanha.
4. Formigueiros construídos
nos galhos de árvores, que produzem um grande ruído em resposta às vibrações
externas, com as formigas-soldado entrando em posição de combate.
Conto
publicado em “Cidades de Memórias”
Nenhum comentário:
Postar um comentário