O Meritíssimo Doutor Desembargador Ademar Santos não conseguia pegar no sono. Tantos títulos e importâncias, membro de uma espécie de realeza dos nossos tempos, trocaria tudo pela tranquilidade de um descanso profundo. A cerimônia da tarde fora arrasadora. Humilhação total. Tantos discursos e homenagens para consagrarem uma farsa: para consagrarem o“pato” escolhido. O “otário”, o“esparra”, como dizíamos quando garotos. Pelo menos poderíamos ter saído logo depois do palavrório. Mas Glorinha queria aproveitar ao máximo. Uma taça de champanhe atrás da outra. Como se fosse a última gota. La Dernière Goutte. Ah, que saudades daquele restaurante em Lyon, dos tempos em que era feliz. Jogava meu vôlei na praia, dava uma passadinha no escritório de advocacia só para assinar papéis, uns telefonemas e o dinheiro caía diretamente na conta. Ainda havia tempo para dar um trato na coleção de armas e ir ao estande de tiro. Mas tudo tem suas vantagens. Não teria mais que aturar aquele contínuo me chamando de “Meretríssimo” ou Doutor Santo. A culpa era minha. Tive de nomeá-lo para meu gabinete e em troca o Santoro nomeou Patricinha, minha filha, para nem aparecer por lá, ficar escrevendo aquela tese ridícula e frequentar academias de ginástica às custas da Previdência Judiciária. Cada vez que eu pedia restituição dos gastos da Patricinha, tudo assinado, como seções de fisioterapia da Glorinha, sentia uma pontada de vergonha. No fundo, éramos todos uns espertalhões que disfarçavam falcatruas. Ladrões togados, como chamaria a imprensa popular!
Tudo sob o respaldo da lei. A Previdência Judiciária recolhe cinco por cento de cada papel registrado nos cartórios. Por outro lado, a Previdência Advocatícia recolhe o mesmo para cada taxa judiciária. O equivalente seria um policial recolher dinheiro para o plano de saúde privado dos lixeiros e, em troca, estes abastecerem a caixa de sua previdência, também privada. Diante da Justiça todos se calam. No fundo não somos respeitados. Somos temidos. Quem alegará inconstitucionalidade nessas operações casadas?
Agora, a novidade. Depois da lei que presenteia as filhas solteiras com o direito de receber pensão vitalícia dos pais, Desembargadores, Patricinha tratou de divorciar-se e vive aboletada aqui em casa. Ela e Glorinha planejaram suas vidas após minha morte. A pensão inicialmente ficaria com a mãe e depois passaria integralmente para a filha. Uma beleza de amor filial: abrir mão da metade do dinheiro enquanto Glorinha for viva. O gosto de cianureto amargou minha boca.
Cansado de rolar pela cama, levantou-se, foi à cozinha, tomou um copo de água e sentou-se na varanda. A observação do ir e vir das ondas do mar parecia lavar a podridão dos pensamentos.
Silhueta solitária cortou o cenário, andando pela calçada. Anônimo popular? Inocente? Acusador? Vítima? O passado e a imagem do pai acudiram-no das angústias: “não tem sentido qualquer um, só porque estudou com afinco, ir dominando as instituições da República através destes concursos públicos. E a representação de classes? Onde fica a tradição? Afinal, o aperfeiçoamento vem com o exercício profissional, com a firmeza de uma educação esmerada e sólidos princípios morais.” Assim, numa tarde de sábado, a banca do concurso público tomava uísque lá em casa com meu pai, enquanto eu copiava as respostas da prova nas folhas de papel almaço rubricadas.
No começo dava medo. Depois, pura rotina. Quando a questão envolvia gente importante, era só reproduzir as últimas linhas dos memoriais que os advogados enviavam e lá estavam as sentenças com citações em Latim, Italiano e até em Alemão. Era apenas decidir entre a melhor oferta. Para a gentinha sem valor, chutava qualquer coisa: anexar não sei o quê aos autos, solicito informações e por aí vai.
Os juízes corruptos, personagens de Graça Aranha em Canaã, tinham razão: Na miséria anda a Justiça.
Acabei corregedor da justiça e seria o próximo presidente desta corte. Mas começaram os falatórios: “O Conselho Superior vai considerar a candidatura uma afronta. Já tem quase uma dúzia de colegas sendo investigados. Tem envolvido com milícias, outros com vendas de sentença. O negócio está feio. E pra entornar o caldo, este processo no Tribunal Superior contra seis juízes que copiaram o gabarito do concurso público. Está certo, só um é seu filho. Mas os outros cinco colegas alegam que foi você, na condição de corregedor, quem deu uma prensa na banca e pegou o gabarito. Se os filhos de vocês são tão ineptos e analfabetos que copiaram tudo igualzinho não é culpa nossa. Assim é demais. O que falam por aí é arrasador. Ora, ora, seis provas iguais, ipsis literis”.
“Para piorar a situação, aquela mulher andou dando entrevista na imprensa, lembrando que há trinta anos você participou da banca de um concurso para titular de cartório. A prova era de múltipla escolha e mesmo assim cinco respostas do gabarito estavam erradas o que anularia a classificação dos sete primeiros colocados. Justamente os... deixa pra lá. Foi difícil segurar a situação alegando a soberania das decisões da banca e escutar os desaforos desta mulher que seria a primeira colocada: – um antro de corruptos e ainda por cima incompetentes. Já pensou se mandássemos dar um sumiço nela? Apareceria até a ONU por aqui.”
A cabeça fervilhava. As mãos tremiam. Sessenta e cinco anos, obrigado a aposentar-se por motivos de saúde. O pior era a fúria da Glorinha, preocupada com o futuro dos chás semanais neste belo escritório deixado pelo sogro. As lombadas gravadas a ouro davam vida e nobreza à dinastia iniciada pelo pai do sogro e agora continuada pelo filho Paulinho, que teria – depois de tudo resolvido, assim queira Deus, como dizia Dona Glorinha – um retrato na galeria dos membros daquela Egrégia Corte de Justiça.
“Tanto
Ah... havia
Naqueles casos em
“Este
Baboseiras da Tese de Mestrado da Patricinha. Puro mau gosto: “A Corrupção Através da História”.
Pensando bem, quem sabe um carimbo torto não teria salvo minha carreira?
Foi uma noite de insônia e sofrimento. Amanhã esquecerei tudo. Começarei vida nova. Voltarei ao vôlei, aos velhos amigos do Clube de Tiro. Vou até dar um trato nas duas novas aquisições: o Taurus Judge e a Glock.
Este revólver, fabricado pela empresa brasileira Forjas Taurus, recebeu o prêmio Handgun of the Year 2008, patrocinado pela National Rifleman Association, em Louisville, estado de Kentucky, nos Estados Unidos. A arma foi batizada com o nome de judge (juiz) devido ao grande número de juízes que portam este modelo da Taurus nas salas dos tribunais norte-americanos – por ser um revólver poderoso para tiros de defesa a curta distância.
Já a pistola Glock, vinda da Áustria, é a menina dos olhos de forças militares e comandos especiais. O meu exemplar, de 9 mm, é privativo da Polícia Federal e Forças Armadas, sendo adaptado para atirar até sob a água. É mortífera, mas muito segura com seu sistema “safe action” de três travas. Construída com um polímero especial e conhecida como “a pistola de plástico”, é um terror para a segurança de aeroportos.
A vergonha de ontem será, no amanhã, um ruidoso sucesso com a turma do tiro.
Amanhece. O renascer. Os primeiros raios de sol. O começar de novo. Apenas despertando nosso personagem, salvando-o de pavorosos sonhos. O estrondo da Glock livrou-o da consciência. Gritos desesperados de Dona Glorinha.
E aqui voltamos a Canaã: a tragédia acaba em justiça.