“Escritores de coquetel, profissionais de tarde de
autógrafos.
São mais atores do que escritores”.
Marques Rebêlo
Finalmente
cheguei ao final das mais de três centenas de páginas da Edição Especial da Revista da Academia Carioca de Letras,
comemorativa dos 450 anos da Cidade de
São Sebastião do Rio de Janeiro. São
quase quarenta crônicas, poemas, ensaios, comentários e observações diversas
sobre o Rio, enfocando sua História, Literatura, Educação, Música, Arte,
Futebol, Paisagismo etc.
A par da grande abrangência desta
publicação, ficou no ar uma sensação de que homenageavam uma cidade inexistente
ou perdida em um passado remoto.
... e aqueles versos, do poema Discurso Afetuoso, de Ribeiro
Couto a martelar:
Ó
poetas de gabinete,
Que da vida sabeis apenas a lição dos livros,
Vossa poesia é um jogo de palavras.
Que da vida sabeis apenas a lição dos livros,
Vossa poesia é um jogo de palavras.
Para
vós não existe a vida: existem os temas poéticos ...
Tirei da estante uma edição
da História da Literatura Brasileira
do Acadêmico Carlos Nejar, financiada pelo Ministério
da Educação e pela Fundação Biblioteca Nacional, em
parceria com a editora Leya, e reli
aquele trecho:
“Há
escritores que se distinguem pela criação de seres vivos... como aconteceu com
Balzac ... Jorge Amado. Outros são
criadores ou inventores de linguagem, tal Guimarães Rosa ... Clarice
Lispector. Há os que reúnem ambas – os
mais raros. José Sarney,
vigorosamente pertence ao rol dos primeiros ...
Seu realismo não se prende à tradição machadiana como Cyro dos Anjos, é
mais afim do autor de Velhos Marinheiros ...”
E
assim, ao longo de páginas e mais páginas, neste livro financiado com dinheiro
público, é forjado um “marco” na literatura brasileira!
Documentos histórico-literários deveriam
ser mais críticos, fazendo uma ponte com o presente, como, por exemplo,
mostrando a violência, tortura e morte que permeia o Brasil, em particular o
Rio de Janeiro de hoje, com milhões de pessoas vivendo sob o jugo de
criminosos, sem nenhuma cidadania, um sistema educacional que apenas produz
passivos eleitores, pessoas morrendo nas filas dos hospitais e o velho voto de
cabresto travestido agora de "programas sociais". Parece que querem
apenas transmitir a ideia de que tudo ficou no passado.
Com o fim de qualquer espírito
crítico, não só na área cultural como em todos os setores de nossa sociedade,
vemos medrar o que chamaríamos de “crítica de aplausos”. Uns elogiam aos outros, para depois serem
elogiados, numa mediocridade sem fim. O
que interessa é o “Mercado”, onde tudo é reduzido a lucros.
Infelizmente as regras do “Mercado”,
que acabaram substituindo qualquer crítica literária séria, “contaminaram” e
estão acabando com todos princípios de seriedade intelectual. Criticar, denunciar e contestar são conceitos
banidos deste universo.
Termino transcrevendo este texto de
Fritz Utzeri, publicado no Jornal do Brasil em 2002:
O
QUADRO NEGRO
O Instituto Fernand Braudel de
Economia Mundial, associado à Fundação Armando Álvares Penteado, em São Paulo,
edita um periódico, o Braudel Papers. Não sei por que o papers, em inglês, já que Braudel era francês, mas vá lá. O fato é
que a publicação merece ser lida. No seu último número, apresenta uma aluna
pobre, de uma escola da periferia de São Paulo, em Capão Redondo, um desses
lugares miseráveis e violentos, onde o poder público chega apenas
marginalmente, abandonando e oprimindo, e onde a maioria dos jovens tem como
causa mortis um assassinato. Sandra tem
17 anos e é desses diamantes brutos que o Brasil insiste em produzir, contra
todas as condições, e que em sua maioria jamais serão lapidados e se perderão
cedo na vida, devido à cruel falta de oportunidade. Sandra teve sorte, foi convidada a trabalhar
no Instituto Braudel. Trabalha de dia e
estuda à noite, como centena de milhares de jovens em todo o Brasil. A escola de Sandra é típica escola de
periferia da cidade mais rica do Brasil, São Paulo. Ela foi convidada pelo Instituto a fazer um
diário de seu ano escolar. O relato é devastador. Realidade em prosa de algo
que os governos enxergam apenas em números.
Para as estatísticas, Sandra faz parte das 96% das crianças brasileiras
que estão na escola. Para Sandra, a
escola é um lugar que fica a anos-luz do que se poderia esperar de uma
instituição de ensino. Apesar de tudo,
mesmo no inferno, há quem tente melhorar, há quem busque o conhecimento, mesmo
em meio a tanto abandono e desfavorecimento.
Seu diário mereceria publicação em livro. É a visão pungente, sem retoques, de como o
Brasil trata a maioria de seus filhos.
Mostrarei apenas o primeiro dia do diário, que em si já é uma crônica
escrita com estilo enxuto, objetivo, sem adjetivos, que orgulharia a maioria
dos jornalistas que conheço (e que não conheço também).
“Quarta-feira, 14 de
fevereiro.
As aulas começaram há seis dias, só que até agora nenhuma matéria
foi dada. Como o horário das aulas ainda
não foi definido, os alunos ficam nos corredores, até às 19h20, querendo saber
para que salas irão. Outros preferem
ficar do lado de fora da escola, escutando o som que vem de um carro
estacionado. Na sala de português não há
iluminação suficiente e há goteiras nos corredores. Quando as aulas começam, os alunos reclamam
muito quando os professores usam a lousa.
Por enquanto, ainda estão fazendo simplesmente
revisão. A professora de português,
Marina, passou um texto sobre narração que encheu a lousa. Depois da primeira aula resolvi sentar na parte
do fundo. Dois alunos sentados atrás de
mim conversavam sobre armas:
- Seu pai ainda tá com aquele calibre 12?
- Tá sim, quer comprar?
- Quanto ele quer?
- R$ 1.500.
- Você tá louco! E aquela arma da polícia, que atira
bolinha de borracha, que eu não sei o nome, quanto ele quer?
- R$ 350.
No início da conversa, pensei que fosse brincadeira. Sendo
eu nova na sala, talvez quisessem me impressionar. Não tenho certeza. Quando a professora de química disse que não
ia deixar sair da sala para fumar, os meninos disseram: “Aqui ninguém fuma, só
cheira!”
Quando o sinal bateu para a última aula fui até o orelhão
que instalaram na escola. Alguém já
tinha quebrado. Às 22h fui embora. Não tinha luz na rua.”
Fritz Utzeri, Jornal do Brasil de 24/04/02).
Notas:
-No
site da Academia Carioca de Letras
poderão obter em PDF a publicação citada: http://www.academiacariocadeletras.org.br/
-Nos
links abaixo, dois artigos críticos sobre o Rio de Janeiro de hoje: