O jeito foi sair andando por aí. Perdido no tempo.
Como suportar tanta infâmia? Como suportar aquela patética figura,
lágrimas de crocodilo, citar Galileu Galilei – Cientista tão perseguido pela Medieval
Inquisição – e nomear para uma suposta Comissão da Verdade, deplorável antigo Procurador
Geral da República que tentou proibir, em nome do fundamentalismo religioso, a
pesquisa científica em células-tronco?
Para agravar, ao lado, entre palavras
como Justiça e Democracia, aplauso das latrinas do poder vindas daquele eterno
Senador que há mais de meio século vive da Mentira.
Alguma coisa aconteceu. Esqueço o presente, lembro o passado. Parado na Senador Vergueiro, esquina com
Paissandu, posso até ler:
Festival Paissandu (um filme por dia) – Ar Condicionado Perfeito
Hoje, 10 de janeiro de 1966, 3ª feira:“O Demônio das 11 horas”
(Pierrot Le Fou)
No cartaz ao lado:
Cia. Cinematográfica
Franco Brasileira
Apresenta:
“Cléo de 5 às 7”
“Voilá enfin le film qui me donne envie de continuer à
faire du cinéma”
Brigitte Bardot
Na
banca próxima compro o último Cahiers Du
Cinéma e continuo meu exílio percorrendo atalhos das lembranças. Algumas nem sempre agradáveis, mas acunhadas
nas camadas de memória que não se apagam.
Na
esquina da Avenida Rio Branco com Sete de Setembro, fico observando o enorme
cartaz na lateral do prédio número 97 desta última rua – sede da Editora Civilização
Brasileira –, mostrando uma pessoa amordaçada, com olhos vendados e ouvidos
cobertos pelas mãos. Em letras
garrafais, escrito:
Quem não lê, mal fala, mal ouve,
mal vê.
Uma frase para nossos dias!
Entro em um velho sebo. Abro o livro Crônicas Inéditas de Manuel Bandeira. Na primeira página a fotografia do bonde:
Pça
15 Novembro –E.
de Ferro-10 de Março.
No canto escuro, uma moça muito branca,
cabelos negros, escorrendo a confundir-se com o vestido preto. Do lado esquerdo pendia um violoncelo. Com a mão direita folheava grosso
volume. A cada página, o movimento dos
cabelos desnudando os ombros alvos.
Entre as estantes, um velho ia se
arrastando, olhos colados nas lombadas.
Ao me ver sorriu e comentou: “Vou
anotando os nomes dos livros que gosto.
Em casa passo tudo a limpo no caderno – minha biblioteca. Um dia, quando tiver dinheiro, vou comprar
tudo.”
Caminho pela Avenida Rio Branco.
O inesperado: súbita rajada de vento
arranca as vidraças de um prédio.
Correrias. Para onde ir? Uma
grande borboleta amarela passou roçando em meus cabelos. Quem sabe não seria a borboleta perdida de
Rubem Braga? Chance única de
escapar. Sigo o lepidóptero. Acabo deslizando pelas rampas sinuosas do Marquês de Herval, refugiando-me na Leonardo da Vinci. Lá sou recebido com amistoso cumprimento da
livreira, não a filha, mas a mãe.
Provavelmente lembranças de algum antigo frequentador, há muito
desaparecido – são meus cabelos brancos e a bengala que me acompanha.
Retorno. Entro em casa. Ressuscito um
velho LP com a primeira gravação
mundial da Sinfonia
de Luciano Berio, pela Filarmônica de Nova
York acompanhada do The Swingle Singers
e regida pelo próprio
compositor. Reativo uma velha vitrola Garrard Zero
100, para
finalmente , retrocedendo mais de quarenta anos ,
desfrutar de boa música, pensando como seria bom para a Humanidade se
pudéssemos também ressuscitar os ideais de Democracia
e Liberdade, substituídos nos dias de hoje pelo culto da Mentira
e Passividade.
Nota:
A Sinfonia de Luciano
Berio foi composta em
1968, com estreia mundial pela Filarmônica
de Nova York em
10 de outubro do mesmo
ano. Saudada pelo
TIME
como: “Uma excitante experiência musical que
focaliza os males da época
melhor do que
todos os movimentos
de protesto de vanguarda ,
de misticismo e de violência
que afetam a vida
contemporânea . É uma grande
e estimulante composição musical”.
Nesta Sinfonia
temos trechos de Le Cru et le Cuit de Claude Levi-Strauss, extratos
de The Unnamable (O Indescritível ) de Samuel Beckett e um tributo a
Martin Luther King, com sofisticada e ímpar
integração entre
música e vozes.