No ano de 212 a.C., após um cerco de dois anos à cidade de Siracusa, na Magna Grécia, atual Sicília, esta foi capturada pelas legiões romanas. Quando a casa de Arquimedes – que com seus engenhos ópticos e mecânicos retardou ao máximo a queda da cidade – foi invadida pelos romanos, ele estava no quintal desenhando na areia suas figuras e estudos geométricos, quando um dos soldados pisou sobre os mesmos. Noli tangere circulos meos (não toque em meus desenhos), exclamou Arquimedes em seu precário latim, sendo imediatamente morto por uma lança, que destruiu fisicamente este velho filósofo e matemático. Mas não conseguiu eliminar o seu acervo intelectual, que, atravessando os séculos, chegou até nós.







Neste blog republicaremos também artigos da minha coluna semanal BRASILIANA, do jornal MONTBLÄAT editado por FRITZ UTZERI.




segunda-feira, 5 de março de 2012

MARISA


         “Foi aqui.  Aqui esteve ela.  Estes leões de pedra, hoje decapitados, a contemplaram.  Esta fortaleza, um dia inexpugnável, agora um monte de ruínas.  Sua última visão.  Os séculos, sol, chuva e vento foram gastando-a.  Apenas o céu permanece igual.  Um conglomerado azul profundo, imenso e vasto.  Perto, as muralhas ciclópicas, que hoje, assim como antigamente, orientam o caminho para o portão sob o qual nenhum sangue brota.  Para as trevas.  Para o matadouro. E sozinha...”
(Cassandra, Christa Wolf)

Figura 1 – Porta dos Leões.  Micenas, Grécia.  Foto T.Abritta, 1990.


         A viatura corre, trepida, eu jogada de um lado para o outro, mãos algemadas pra trás, batendo com a cabeça sem nenhuma defesa.  A caçamba fede a urina, fezes, vômito, sangue e morte.  Todas nós sempre soubemos que seria assim.  Mas pensando bem, depois de passar cinco anos entre a boate e o quartinho dos fundos, conheci um mundo diferente.  Foi o melhor aniversário nos meus dezoito anos de existência.  O Detetive Jacaré não admitia indisciplina.  Já havia prometido que quando eu fosse de maior – pra não ter problemas com a Costumes nem com o Juiz de Menores – ia lá para a Avenida Atlântica.  Este era o sonho de todas.  Até lá, tinha que fazer a apresentação e depois atrair fregueses.  Era sempre o mesmo, todo santo dia.  Mas assim que entrou aquele playboy, dizendo que vinha dirigindo de Petrópolis e estava seco pra comprar cigarros, falando umas coisas e palavras que eu não entendia nada, me derreti toda.  Quando perguntou meu nome, falei que era Marisa.  Era este não.  Mas achava lindo aquele anúncio: “De mulher pra mulher, Mariiisa”  E tudo ficava rosa...  Que quartinho que nada!  Fomos lá nuns cantos que ele conhecia.  Falei que era artista, que ele podia fazer de tudo, até me bater.  Lindo quando disse: “em mulher não se bate nem com uma flor.”  Depois me pagou até cachorro quente e coca-cola.  Não posso dizer que estou arrependida.  Não sou a primeira nem serei a última a fugir daquela escravidão.  Dizem que tiram as algemas e mandam correr.  Depois acertam nos joelhos.  A condenada vai se arrastando com expressão de terror e eles falando que vão furar o rosto todinho com tiros pra não ser reconhecida – mas acho que é pra enfear mais como castigo.  Lembrei-me da aula de catecismo lá no Pará, antes de ser vendida: Padre Leonel dizendo que quebraram os joelhos de Jesus com um a barra de ferro para ele não apoiar os pés, ficando apenas dependurado pelas mãos pregadas na cruz.  Sem forças, respirando com dificuldade, morreu rápido, mas sofreu mais.  Quem sabe Nossa Senhora não me levaria, e eu não ressuscitaria para a vida eterna?  O Pastor disse que perdidas iam pro Inferno.  Não acredito nesta história não.  E o playboy, vai pro céu junto com Jacaré?  E Dona Rosário e todos os anjinhos abortados?  Não sei não.  Deve ser tudo conversa pra boi dormir.  Acho que já estou sentindo a presença da Virgem Santíssima. 



         A viatura parou.  A noite está fria.  A noite está estrelada.  Escuto a voz de Jacaré: “tira as algemas da vagabunda pô!”






          E sobre mim, silenciosa e triste,

         A Via Láctea se desenrolava

         Como um jorro de lágrimas ardentes... (*)

Notas:

(*). Fragmento de Via Láctea, Olavo Bilac.

 Conto publicado no livro "Cidades de Memórias".

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