“Foi aqui. Aqui esteve ela. Estes leões de pedra, hoje decapitados, a
contemplaram. Esta fortaleza, um dia
inexpugnável, agora um monte de ruínas.
Sua última visão. Os séculos,
sol, chuva e vento foram gastando-a. Apenas
o céu permanece igual. Um conglomerado
azul profundo, imenso e vasto. Perto, as
muralhas ciclópicas, que hoje, assim como antigamente, orientam o caminho para
o portão sob o qual nenhum sangue brota.
Para as trevas. Para o matadouro.
E sozinha...”
(Cassandra,
Christa Wolf)
![]() |
Figura 1 – Porta dos Leões. Micenas, Grécia. Foto T.Abritta, 1990.
A viatura corre, trepida, eu jogada de
um lado para o outro, mãos algemadas pra trás, batendo com a cabeça sem nenhuma
defesa. A caçamba fede a urina, fezes,
vômito, sangue e morte. Todas nós sempre
soubemos que seria assim. Mas pensando
bem, depois de passar cinco anos entre a boate e o quartinho dos fundos,
conheci um mundo diferente. Foi o melhor
aniversário nos meus dezoito anos de existência. O Detetive Jacaré não admitia indisciplina. Já havia prometido que quando eu fosse de maior
– pra não ter problemas com a Costumes nem com o Juiz de Menores – ia lá para a
Avenida Atlântica. Este era o sonho de
todas. Até lá, tinha que fazer a
apresentação e depois atrair fregueses. Era
sempre o mesmo, todo santo dia. Mas assim
que entrou aquele playboy, dizendo
que vinha dirigindo de Petrópolis e estava seco pra comprar cigarros, falando
umas coisas e palavras que eu não entendia nada, me derreti toda. Quando perguntou meu nome, falei que era
Marisa. Era este não. Mas achava lindo aquele anúncio: “De mulher
pra mulher, Mariiisa” E tudo ficava
rosa... Que quartinho que nada! Fomos lá nuns cantos que ele conhecia. Falei que era artista, que ele podia fazer de
tudo, até me bater. Lindo quando disse: “em
mulher não se bate nem com uma flor.” Depois
me pagou até cachorro quente e coca-cola. Não posso dizer que estou arrependida. Não sou a primeira nem serei a última a fugir
daquela escravidão. Dizem que tiram as
algemas e mandam correr. Depois acertam
nos joelhos. A condenada vai se
arrastando com expressão de terror e eles falando que vão furar o rosto todinho
com tiros pra não ser reconhecida – mas acho que é pra enfear mais como
castigo. Lembrei-me da aula de catecismo
lá no Pará, antes de ser vendida: Padre Leonel dizendo que quebraram os joelhos
de Jesus com um a barra de ferro para ele não apoiar os pés, ficando apenas
dependurado pelas mãos pregadas na cruz.
Sem forças, respirando com dificuldade, morreu rápido, mas sofreu
mais. Quem sabe Nossa Senhora não me
levaria, e eu não ressuscitaria para a vida eterna? O Pastor disse que perdidas iam pro
Inferno. Não acredito nesta história
não. E o playboy, vai pro céu junto com Jacaré? E Dona Rosário e todos os anjinhos
abortados? Não sei não. Deve ser tudo conversa pra boi dormir. Acho que já estou sentindo a presença da
Virgem Santíssima.
A viatura parou. A noite está fria. A noite está estrelada. Escuto a voz de Jacaré: “tira as algemas da vagabunda
pô!”
E
sobre mim, silenciosa e triste,
A Via Láctea se desenrolava
Como um jorro de lágrimas ardentes...
(*)
Notas:
Nenhum comentário:
Postar um comentário