Que chuvarada! Verdadeiro dilúvio. Cortei caminho por Bonsucesso, acabei no
Campo de São Cristóvão. Lá me
atrapalhei, errei a subida do viaduto para o Túnel Rebouças. Acabei em imenso engarrafamento na Rua São
Luiz Gonzaga, de volta em direção a Bonsucesso!
Em meio à lentidão do trânsito, como
em outro mundo, aquele senhor, roupas surradas, longos cabelos brancos
ensebados, olhava, mas não via. Sentado
no tamborete focava o infinito. Em que
pensaria? O casaco de couro pareceu-me o
mesmo – apenas mais acabado, como o dono.
A familiar sordidez no misto de padaria e botequim. Era o Lucrécio. Acenei, gritei. Inútil.
Fantasmas povoam outras esferas.
Finalmente estacionei o carro. Encontrei apenas o proprietário, cotovelos
cravados no balcão engrossado pela sujeira, rosto amarelado pela iluminação
mortiça. Sentei-me num caixote, respirei
o cheiro de urina de rato, o bolor pelas paredes. Vi prateleiras vazias. Pobreza e sordidez explícita transportando-me
a um passado com outros aromas e sabores.
Sentados na grama, atentos ao sistema
de som que transmitia uma palestra de Nelson Werneck Sodré. O auditório do ISEB (1) estava lotado.
Marcelino, como sempre, atrapalhando com suas conversas sobre culturas
orientais – nada meritório. Apenas para
impressionar as garotas: o zen-budismo...
“O Marxista”, muito calado, ainda com dores, um braço e um dos pés engessados
depois de sua recente “intervenção” por ocasião da cerimônia, no Cemitério São
João Batista, em intenção aos mortos na tal de Intentona Comunista de
1935. Hugo, sempre odiado por todos: vou duplicar o lucro da firma do papai com
meus conhecimentos da mais-valia...
Cleber, até então calado, lamentava: meu
pai é um agente provocador! Cortou carro
e mesada dizendo que comunista deve andar a pé.
Junto com o povo!
Lucrécio vivia como pensava: o imperialismo capitalista corrompe a
juventude com cachorro-quente do Bobs e Coca-Cola. Assim, excursionávamos
pelas padarias do Rio, conhecendo deliciosos sanduíches de pernil e queijos
gordurentos.
E eu?
Eu? Eu sempre respondendo com
argumentos “irrefutáveis”: ora bolas,
vocês estão desvinculados da realidade!
1965, acervo Teócrito Abritta
O trânsito melhorando, a fome
apertando:
– Tem água mineral com gás?
– Com gás não.
– Então uma sem gás.
– Também não tem.
– E pra comer?
– Sanduíche de queijo.
– Um, por favor.
– Mas não tem pão.
– Ah... então uma porção de queijo
picado.
– Mas não tem queijo.
Definitivamente uma última trincheira.
A sórdida padaria do Lucrécio!
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(1)
Instituto Superior de Estudos Brasileiros, órgão do antigo Ministério da
Educação e Esportes, criado pelo Presidente Juscelino Kubitschek, reunindo
pensadores e intelectuais para discutir os problemas brasileiros. Paralelamente havia palestras e cursos para a
comunidade, em particular, para jovens estudantes. Em primeiro de abril de 1964 foi totalmente
destruído a golpes de baionetas por uma tropa de fuzileiros navais e sua
biblioteca incendiada.
(2)
PSSC (ver na figura), Physical Science Study Committee,
programa norte-americano para desenvolver o ensino de Ciências em uma forma
mais atraente. Todo o material deste
projeto (livros, filmes, laboratórios, testes e treinamento de professores) foi
lançado no Brasil, em 1963, pela Editora Universidade de Brasília em
colaboração com a Unesco.